Quando o Governo apresenta o seu programa, a ZERO analisou as diferentes medidas apresentadas e identificou as que considera positivas, as que considera negativas, mas também as omissões. Num documento desta natureza é sempre difícil apreender até que ponto o que se escreve irá ter reflexos concretos nas políticas que virão a ser desenhadas. Resta-nos ter esperança de que a forma vaga como alguns aspetos são referidos não só impeçam de ser concretizados.
Ainda que em algumas áreas as propostas integrem medidas que a ZERO considera fundamentais, o documento parece refletir uma visão muito centrada no primado da Economia, dando a entender que existe uma certa tendência para voltar a um paradigma que, consideramos, já provou não ser capaz de assegurar a transição necessária para uma sociedade sustentável. Exemplo disto é o facto da palavra sustentabilidade surgir, essencialmente, associada a questões económicas e pouco à sua definição de origem. Da mesma forma, o conceito de gerações futuras está praticamente ausente, quando se reforça a necessidade de integrar os direitos e interesses destas gerações nos processos de decisão do presente. Mesmo a visão para o exterior, seja para a UE, seja para além desta, parece colocar em primeira linha a diplomacia económica.
Legenda: Medidas positivas (+) | Medidas negativas (-) | Omissões (ø). As áreas estão apresentadas por ordem alfabética.
Agricultura
+ O reforço da abordagem de uma só saúde é bem-vindo. Mas é importante explicitar que a precaução e prevenção são princípios basilares, pelo que o apoio à transformação dos sistemas agropecuários é a solução mais segura e económica no longo prazo.
+ Reprogramação do PEPAC é necessária e a simplificação de procedimentos para os beneficiários é crucial. É importante fazer uma distinção entre beneficiários, ajustando a justiça na distribuição de apoios e aumentando as exigências a par com o impacte potencial das explorações agrícolas.
+ O aumento do grau de autoaprovisionamento é uma prioridade fundamental, sobretudo na produção de bens alimentares essenciais e estratégicos de que somos deficitários. No entanto, juntar este objetivo a indicadores como a “balança comercial” e as “exportações”, enfraquece o seu propósito – esta dinâmica não é conducente à soberania alimentar, mas à especialização e redundância entre importações e exportações.
+ Fomentar o acesso à terra por jovens agricultores.
+ A monitorização dos solos é de facto uma prioridade.
+ Fomento de cadeias curtas locais.
+ Valorização dos sistemas de produção extensiva.
– A ideia de que se pretende gastar recursos públicos para ignorar os impactes dos sistemas agrícolas de alto input e do consumo excessivo de carne, servindo os recursos públicos para financiar a propaganda dos grandes agentes do sector, confundindo-os com a totalidade da agricultura que se faz em Portugal.
– A implementação de um mercado voluntário de carbono para a agricultura e floresta é um desafio conceptual gigantesco.
– Mobilizar o Fundo Ambiental para continuar a financiar um modelo de regadio que se traduz no favorecimento de monoculturas industriais é uma perversão deste instrumento e ignora os impactes do modelo atual, que inclui o aumento das captações de água.
– A respeito do regadio, o novo Governo pretende favorecer monoculturas industriais, expandindo a área de grande regadio coletivo. incluindo as áreas ditas “precárias” nos regadios existentes, levando à conversão permanente de áreas que não tiveram avaliação de impacte ambiental.
ø Avaliação ambiental estratégica do programa nacional de regadios.
ø Ao se querer “avaliar e rever os limites dos perímetros de rega públicos, adequando a sua área beneficiada às tecnologias e eficiência de rega atual” não se refere a necessidade de adequação dos perímetros de rega e das culturas praticadas às disponibilidades hídricas.
ø Inexistência de qualquer consideração pela crise social dos trabalhadores agrícolas imigrantes e a proliferação de situações de escravatura moderna.
ø Menciona-se agricultura de precisão, mas nada é dito sobre Agricultura Biológica e Agroecologia, indiciando um favoritismo deste Governo por uma abordagem em particular.
ø Não existe menção da necessidade de implementar uma rede pública de serviços de extensão agrícola.
Água
+ Acelerar a implementação dos Planos Regionais de Eficiência Hídrica e do Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030) [Nota ZERO: Desde que não seja à custa do apressar de procedimentos de Avaliação de Impacte Ambiental, licenciamentos, etc, colocando em causa a qualidade das decisões finais.
+ Desenvolver programas específicos para reduzir as perdas de água nas redes de abastecimento, para reforçar a capacidade de armazenamento das albufeiras e para aumentar a reutilização de águas residuais tratadas.
+ Assegurar a modernização das redes de monitorização de recursos hídricos.
+ Incentivar as infraestruturas verdes e o aproveitamento de águas pluviais.
+ Aumentar a quantidade de águas residuais tratadas utilizadas no setor primário.
– Acelerar a execução das centrais de dessalinização previstas e avaliar novas necessidades, procurando mitigar os custos económicos do preço água através de medidas conexas no âmbito energético.
– Investir no aumento da capacidade de armazenamento de águas superficiais e consequente aumento das áreas beneficiadas por regadios públicos; [Nota ZERO: Investir no aumento da capacidade de armazenamento, sendo que tal medida significa investir na construção de novas barragens será insistir numa falsa solução para o problema das disponibilidades hídricas em Portugal (que se verifica sobretudo a Sul), podendo contribuir para o agravamento do problema já que o consequente aumento das áreas de regadio contribui para a criação de novas necessidades de água que serão crescentes e às quais a capacidade de armazenamento criada poderá não dar resposta. Acrescem ainda os impactes sobre ecossistemas locais e os habitats naturais resultantes da criação de novos reservatórios de águas superficiais.
ø Não há qualquer referência à necessária revisão do Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água.
Clima e Energia:
+ Lei de Bases do Clima: Numa altura que passam mais de dois anos da entrada em vigor da Lei de Bases do Clima (Lei n.º 98/2021), a lei continua em larga medida por aplicar, com o processo de regulamentação e aplicação a marcar passo, pelo que é positivo o empenho demonstrado pelo governo em corrigir este estado de coisas.
+ Estratégia para o Armazenamento Energético: É positivo que o Governo mostre empenho em desenvolver uma Estratégia Nacional de Armazenamento de Energia até 2026, imprescindível para a gestão e uso eficaz da energia renovável produzida no país.
+ Comunidades de energia e produção descentralizada: é de salutar o empenho em estimular formas de produção de energia colaborativas e individuais, que aproveitam o potencial de telhados e outras coberturas, promovem a diversificação geográfica das fontes energéticas, aumentam a resiliência do sistema elétrico, reduzem as perdas de transmissão, e contribuem para a sustentabilidade e a autonomia energéticas.
– Neutralidade climática: o programa fala da antecipação hipotética (“idealmente”) da neutralidade climática de 2050 para 2045, quando Portugal nas Nações Unidas, quer na voz do primeiro-ministro quer na voz do Presidente da República, já a anunciou, e a mesma é fulcral para aproximar o país de uma trajetória compatível com o limite de 1,5ºC do Acordo de Paris.
– Estratégia Industrial Verde: uma componente vital da Lei de Bases do Clima e do desenvolvimento industrial do país, que está em atraso e que mereceria por si um empenho particular da parte do Governo, mas que o mesmo omite clamorosamente no seu programa.
Compras públicas ecológicas/circulares
+ É importante que as Compras Públicas Circulares e Ecológicas aplicáveis a toda a administração pública, central e local sejam referidas como uma estratégia importante para Portugal. Contudo, mais uma vez, voltam a ser referidos os critérios económicos, quando a iniciativa visa dar maior relevo a outras componentes que não apenas o preço final.Conservação da Natureza e da Biodiversidade
+ Remover barreiras obsoletas nos rios e promover o restauro de ecossistemas fluviais.
+ Assegurar que os parques e reservas naturais têm diretores com funções executivas, responsáveis diretamente pela gestão operacional no dia-a-dia, devidamente articulados com a respetiva Comissões de Cogestão.
+ Elaborar o Plano Nacional de Restauro da Natureza, acautelando as especificidades e nacionais e as atividades implicadas, a redução de riscos induzidos e a necessidade de investimentos que remunerem de forma equilibrada os proprietários pelos serviços prestados pelos ecossistemas.
– Reforçar o modelo de cogestão das áreas protegidas para garantir maior operacionalidade e coordenação entre instituições; [Nota ZERO: em vez do reforço ir no sentido de cogestão 2.0, com vista ao recurso à contratualização para promover o restauro de habitats e a conservação das espécies, instituindo áreas de proteção estrita, pretende-se insistir num modelo que está condenado fracasso.
– Implementar o Plano para a Aquicultura em Águas de Transição com o objetivo de aumentar em 50 % a produção aquícola nesta década.
ø não existe qualquer referência à necessidade de completar e implementar os Planos de Gestão das Zonas Especiais de Conservação.
ø Também nada existe sobre implementação do cadastro nacional dos valores naturais classificados ou sobre Planos de conservação de habitats e espécies, assuntos para os quais a ZERO tem vindo a alertar publicamente.
Educação ambiental
+ A educação ambiental é uma ferramenta importante, pelo que é positivo que seja referido o interesse em desenvolver novas iniciativas e projetos nesta área, fomentando a cidadania ativa e comportamentos mais sustentáveis, tendo como prioridade as gerações mais jovens. Contudo, não existe qualquer referência ao conceito de suficiência, um elemento fundamental para a transição para a sustentabilidade nem são dados exemplos das “novas” iniciativas.
– O foco nas gerações mais jovens deixa entrever o conceito de que caberá às próximas gerações assegurarem as transições necessárias. Contudo, a ciência é clara quando afirma que não podemos esperar. As políticas e medidas têm de ser implementadas desde já, pelo que a sensibilização e capacitação ambiental deveria ser reforçada junto dos adultos, dando prioridade a grupos específicos como os próprios decisores políticos, tantas vezes impreparados para encarar os desafios existenciais que se colocam no presente.
Florestas
+ Promover a arborização com espécies autóctones, aumentando a biodiversidade e reduzindo a vulnerabilidade das zonas rurais a incêndios, em colaboração com os agentes do território.
+ Remunerar as externalidades positivas da floresta, com a implementação de mecanismos de compensação dos serviços de ecossistema em áreas de produção e conservação florestal.
+ Reforçar a implementação do cadastro rústico e do emparcelamento, estimulando a gestão agregada de terrenos florestais.
+ Fortalecer o papel das Organizações de Produtores Florestais na extensão florestal através do estabelecimento de contratos programa.
– Viabilizar centrais de biomassa residual das florestas, matos e incultos.
ø não é dado qualquer relevo à implementação do Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, e continuidade da Agência de Gestão Integrada dos Fogos Rurais, não sendo minimamente aceitável que a política do Governo nesta área se resuma a: “Contribuir para diminuir o risco e a perigosidade de incêndios rurais”.
ø Também não é dado qualquer relevo à implementação dos Programa de Transformação da Paisagem, não se compreendendo que o objetivo (e as verbas do PRR) apenas sirvam para “Criar condições de operacionalidade para os programas de gestão ou transformação da paisagem”.
Impactes Ambientais
+ O programa de modernização da AIA – AIA 2.0 é positivo, desde que não seja no sentido da redução do nível de exigência e abrangência do processo de AIA, mas sim de o tornar mais claro, transparente e com uma verdadeira avaliação ambiental em que os efeitos cumulativos sejam verdadeiramente avaliados, incluindo a necessidade de Avaliações Ambientais Estratégicas em algumas áreas, de forma a reduzir o conflito com os instrumentos de gestão do ordenamento do território, reduzindo o excesso de utilização de decisões favoráveis condicionadas que usam e abusam de condicionantes para justificar as decisões favoráveis.
ø não é referido de que forma o programa de modernização da AIA irá alterar os aspetos da legislação do SIMPLEX ambiental que comprovadamente não só não resultaram em nenhuma simplificação de processos, como retiraram a obrigação de muitos projetos com potenciais impactes ambientais significativos de serem submetidos a AIA.
Instrumentos económicos/ fiscalidade verde
+ Parece haver vontade de dar um novo impulso à Fiscalidade Verde para promover o uso mais eficiente e sustentável dos recursos.
+ Premiar os Municípios que mais contribuem para o cumprimento dos objetivos ambientais de Portugal é também uma boa ideia, há muito defendida pela ZERO.
Oceano
+ Propõe-se um modelo de governança para áreas marinhas protegidas, que parece referir-se à implementação da Rede Nacional de Áreas Marinhas Protegidas (RNAMP), o que é muito positivo e urgente, mas não existem objetivos ou prazos definidos.
+ Combater a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada.
+ Melhorar o equilíbrio entre homens e mulheres, promovendo o papel das mulheres nas comunidades piscatórias.
– Mencionam vagamente a sustentabilidade e a maioria das medidas estão viradas para o crescimento económico dos setores marítimos, com pouca menção à proteção e conservação dos ecossistemas marinhos.
– Propostas como a expansão da aquicultura, energias renováveis offshore e turismo marítimo trazem inevitavelmente impactes significativos, como bem sabemos, mas não são apresentadas medidas concretas para avaliar e mitigar estes impactes.
– Os objetivos “garantir o rápido apoio à frota de pesca artesanal” e “gestão sustentável dos recursos haliêuticos”, parecem poder entrar em conflito se não forem implementadas simultaneamente medidas de controlo e fiscalização, e regulamentos que garantam que a exploração dos recursos ocorre dentro de limites seguros, tendo em conta a capacidade de renovação dos stocks.
– O incentivo à indústria transformadora do pescado pode aumentar a procura por recursos pesqueiros, exigindo-se medidas adicionais para garantir a sustentabilidade.
Ordenamento do Território / Habitação
– Foco na flexibilização das limitações de ocupação dos solos, densidades urbanísticas (incluindo construção em altura) e exigências e requisitos construtivos e possibilidade de aumento dos perímetros urbanos.
– Num país com fortes limitações em termos de fiscalização e de garantia de cumprimento de penalizações por infrações, a proposta de simplificar e reduzir obstáculos ao licenciamento e transição de um modelo de controlo urbanístico prévio para fiscalização ex-post, é a receita perfeita para o desastre do ponto de vista do ordenamento do território.
Recursos e Resíduos
+ Referência à necessidade de efetivar uma economia circular, não apenas centrada na reciclagem, mas com enfoque na prevenção – redução e reutilização. Como não há propostas concretas, resta saber se não passará, mais uma vez, de discurso político sem consequência para o futuro.
+ Reconhecimento da importância de assegurar a implementação efetiva dos planos setoriais aprovados para o horizonte 2024-2030 (PNGR, PERSU, PERNU, PAEC) que, se cumpridos, permitirão a Portugal posicionar-se de forma clara como um país circular. Contudo, mais uma vez não são avançadas propostas concretas.
+ Reconhecimento da relevância de agilizar a recolha seletiva e valorização dos biorresíduos, ao proporem uma atualização (espera-se célere) da Estratégia para os Biorresíduos e ao sublinhar que é fundamental criar condições para que a recolha seletiva e sua valorização seja operacionalizada em todo o território nacional (espera-se com um forte recurso ao tratamento in situ – compostagem comunitária e doméstica).
+ Proposta de reestruturação do modelo de funcionamento da Comissão de Acompanhamento da Gestão de Resíduos (CAGER) para desempenhar eficazmente a sua missão.
+ Reconhecimento da importância de incentivar e criar condições para os cidadãos poderem contribuir de forma mais ativa para a economia circular. Resta saber se para além fiscalidade verde, da inovação tecnológica e da psicologia / economia comportamental (nudges) estão também a ponderar a absoluta necessidade de adaptar métodos de recolha (por exemplo, garantindo maior proximidade – recolha porta-a-porta ou incentivando através de sistemas de depósito com retorno.
+ Implementar o funcionamento de novos fluxos específicos de resíduos em sistemas de responsabilidade alargada do produtor surge também referido, mas sem qualquer menção aos fluxos a que se referem (podemos depreender que serão os previstos na recentemente publicada legislação).
+ É positivo que tenha sido assumida a necessidade de melhorar o funcionamento do sistema de responsabilidade Alargada do Produtor.
+ Sobre o tratamento de resíduos industriais perigosos é referido que movimentações recentes fizeram perigar um sistema funcional e que protege a saúde humana e o ambiente, mas não é explicitada qualquer medida concreta a este nível.
+ Assegurar a prevenção da contaminação e remediação dos solos para salvaguardar a saúde pública e a proteção dos recursos naturais, deixando no ar a possibilidade de, finalmente, termos a legislação ProSolos publicada.
+ É explicitamente referida a necessidade de assegurar a prevenção da contaminação e remediação dos solos para salvaguardar a saúde pública e a proteção dos recursos naturais. O ProSolos não é referido, mas resta a esperança de que este finalmente venha a ser aprovado.
– Não existe referência ao sistema de depósito com retorno para embalagens de bebidas descartáveis, previsto desde 2018 para entrar em funcionamento em 2022, mas que só em 2024 viu aprovada a legislação que o enquadra. O SDR é, sem dúvida, um dos grandes ausentes do Plano do Governo, pelo menos em termos de explicitação, ainda que a sua importância possa estar integrada “em espírito” no texto.
Transportes e Infraestruturas
+ Transporte Público de Passageiros: é positivo o objetivo de reduzir os custos do transporte público para o utilizador e aumentar a sua frequência, mas na verdade a prevalência do automóvel enquanto meio de transporte não será resolvida unicamente dessa forma; é necessário da parte do Governo um compromisso claro com a melhoria ampla dos níveis de serviço e atratividade do transporte público, em que o custo e a frequência são só uma parte – há fatores como regularidade, pontualidade, conforto, articulação entre meios de transporte, que são igualmente ou mais importantes.
– Novo aeroporto de Lisboa: é necessária uma decisão rápida sobre a nova localização, mas não só: é preciso decidir com um consenso partidário alargado, respeitando as conclusões do relatório da CTI, e escolhendo a opção estratégica com o menor impacto ambiental e que salvaguarde a saúde pública com o encerramento do aeroporto Humberto Delgado no mais breve espaço de tempo possível.
– Tributação autónoma de veículos de empresas: é lamentável se ocorrer sem a consideração de critérios ambientais, nomeadamente peso e emissões
Fonte: ZERO