Todos aqueles que têm ligações a Bruxelas conhecem os Grupos de Diálogo Civil (CDG na sigla inglesa), o instrumento privilegiado da Comissão Europeia (DG AGRI, nos dossiers agrícolas) na auscultação dos denominados “grupos de interesse”, nos quais nos incluímos. Estes grupos tentam representar, para o bem ou para o mal, o “pulso” da sociedade civil. Neles o setor agrícola e agroalimentar, no número de lugares, tem vindo a perder importância face às ONG, consequência das crises alimentares, da crescente urbanização, da perda de população rural e das sucessivas transformações operadas no seio da Comissão, em que a DG AGRI, como aqui temos referido algumas vezes, tem perdido peso relativo (nomeadamente político) para as áreas do ambiente (ENVI) ou da saúde e bem-estar animal (SANTE). Apesar dos constrangimentos, trata-se de um fórum de discussão, uma forma legítima e legitimada de fazer ouvir a nossa voz, os nossos argumentos e onde podemos fazer a defesa dos nossos interesses, permitindo, ao mesmo tempo, para além de alinhamentos com outras organizações, o acesso a decisores e procedimentos políticos mais relevantes na hierarquia de Bruxelas. Porque é suposto que as Atas e conclusões das reuniões sejam levadas aos respetivos Comissários envolvidos. Ceticismo à parte, são os custos da democracia, do debate livre, da crítica, que se quer construtiva e de “boa-fé”, o tentar convencer os decisores, com dados fundamentados, que estamos no “rumo certo” para a construção de políticas públicas, seja a PAC ou os acordos comerciais. De preferência, com coerência e transparência.
Vem tudo isto a propósito do CDG sobre os Aspetos Internacionais da Agricultura (IAA) em que participámos esta semana. O tema foi o ponto de situação dos diferentes acordos comerciais que a União Europeia (UE) está a negociar com inúmeros países. Mais do que alguma vez aconteceu em reuniões anteriores, ficou bem retratado “o espelho do mundo”.
A UE (e bem) aposta numa estratégia de aumentar as trocas comerciais, diversificar mercados, contornar as dificuldades e os impactos da relação atual com os Estados Unidos da América (EUA) plasmada no recente acordo. No entanto, ao mesmo tempo, a discussão mostra-nos uma Europa desorientada face às tensões crescentes na geopolítica mundial e a um mundo claramente bipolar (EUA/China), mundo no qual queremos ser protagonistas e, se possível, atores principais. Infelizmente, o argumento não é (não tem sido) delineado pelos europeus. Estamos – também me incluo – desconcertados perante uma nova ordem mundial, que não sabemos como irá terminar. Como refere o meu amigo Pedro Nonay nas suas (excelentes) Conferências, “agora que tínhamos as respostas às perguntas anteriores, deparamo-nos com novas perguntas” …para os quais (ainda) não temos respostas.
Afinal a Organização Mundial do Comércio (OMC) ainda existe, com a costumeira atividade de múltiplas Conferencias Ministeriais…. É evidente que tem de ser reformada e essa deve ser a prioridade dos seus membros, sobretudo numa altura em que a litigância nunca foi tão acesa e os resultados praticamente inexistentes. Crescem também os casos de investigações antidumping e de subsídios entre a China e a Europa, nos vinhos, no leite, nos aditivos ou na carne de porco, com tarifas monstruosas, que nos afetam negativamente e que os chineses vão contornando com preços cada vez mais baixos. Vivemos em sucessivas retaliações, de natureza tarifária ou barreiras técnicas que também se traduzem em instabilidade jurídica. O G7 e o G20 também fazem o seu caminho na cena mundial, infelizmente com os resultados que se conhecem, e não é certamente por acaso que Paris quer a liderança do G7 e Washington a do G20, em 2026.
A Comissão apresentou-nos o ponto de situação da cooperação com a União Africana, e dos acordos com os EUA, Mercosul (a fechar em breve), Ucrânia, Austrália, Índia, Indonésia, Tailândia, Filipinas, Malásia, Reino Unido, Marrocos, Albânia, Moldávia, Emirados Árabes Unidos, para além da Rússia e Bielorrússia, nestes dois últimos casos, o que existe para além das sanções, ou seja, temas muito centrados na questão dos fertilizantes.
Como é evidente, estamos perante negociações em muitas frentes, a diferentes velocidades, bastante complexas e que não podem ser imunes a toda esta conjuntura de elevada incerteza e instabilidade.
De acordo com Bruxelas, os elementos comuns são os acordos SPS (garantir regras sanitárias e fitossanitárias equivalentes), o fortalecimento do agroalimentar na sua capacidade exportadora, a proteção dos produtos sensíveis europeus e o reforço da agricultura europeia.
É evidente que as intenções são as melhores, mas receamos que a práxis não corresponda aos discursos sobre a importância do setor e que este seja utilizado como moeda de troca.
Já aqui falámos do acordo com os EUA, foi o possível no contexto atual, o desfecho final ainda não está fechado, temos ainda a definição dos contingentes tarifários, mas é seguramente um parceiro comercial relevante e existe espaço para aprofundar o diálogo e a cooperação, com o eventual regresso da CPA (Plataforma Colaborativa para a Agricultura). Com a Ucrânia, o Conselho acaba de encerrar o acordo, prevendo-se cláusulas de salvaguarda e já se trata aquele país como um candidato à integração e a adoção das regras europeias, por exemplo nos aditivos e bem-estar animal, até 2028. No Mercosul, também temos cláusulas de salvaguarda segundo a Comissão, mas não são reconhecidas pelos países sul-americanos porque simplesmente não estão vertidas no acordo. Finalmente, ainda vale a pena falar no acordo com Marrocos que, ao que sabemos, foi renovado sem ouvir o Parlamento Europeu, sem cláusulas de salvaguarda ou imposição de regras ambientais.
Para além da Ucrânia, este é seguramente o grande e crucial ponto para o futuro.
Todos estes acordos pressupõem, para além da equidade entre a UE e os congéneres dos países terceiros, investimento e capacitação das empresas europeias para terem dimensão e condições competitivas para concorrer com os grandes blocos mundiais.
De facto, quando olhamos para as propostas da PAC pós-2027, com cortes significativos, e a tão anunciada flexibilidade, que pode ser perigosa, ou quando nos detemos na Visão sobre a Agricultura e Alimentação, as suas ambições e (boas) intenções, o que vimos – esperamos estar profundamente errados – é incoerência, falta de transparência e um setor que funciona como moeda de troca na política comercial.
Numa altura em que a Suécia acaba de anunciar stocks de emergência e a China reduz as importações de matérias-primas e caminha para a autossuficiência, como resposta à guerra comercial, não ter como prioridade a segurança alimentar na Europa vai ser um custo demasiado elevado, desde logo pelas convulsões que se adivinham.
Precisamos de sinais claros e esses não estão a aparecer.
É esta a Europa que queremos para os nossos filhos?
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
A segurança alimentar é (mesmo) uma prioridade? – Jaime Piçarra – Notas da semana