Há quase duas décadas, Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace visitaram a região do Lago do Maicá, no município de Santarém, para pesquisar animais e insetos do bioma local. O que eles diriam hoje sobre o veredito da Câmara de Vereadores de Santarém que altera o Plano Diretor Participativo do município? A decisão permite a implantação e expansão da área portuária do Maicá, região que durante três anos abrigou as pesquisas e descobertas científicas dos naturalistas.
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Não saberemos. Contudo, no apagar das luzes da sexta-feira (14/12/18), durante a última sessão da Câmara de Vereadores do município de Santarém de 2018, os representantes do legislativo alteraram a revisão final do Plano Diretor Participativo (PDP), documento jurídico regido pelo Estatuto da Cidade e aprovado pela sociedade civil santarena de forma participativa em novembro de 2017. A decisão relâmpago visa facilitar a construção do porto privado de transbordo de soja das empresas Grupo Cevital, da Argélia, CEAGRO e da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps). A decisão invalida meses de discussões em grupos de trabalho e audiências com representantes dos mais diferentes setores — empresariais, acadêmicos, entes públicos e organizações sociais e contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A inabitual plenária de alteração do Plano Diretor Participativo pegou populações tradicionais, moradores e movimentos sociais em Santarém e da Amazônia de surpresa.
A construção desse megaempreendimento será na região do lago, que é uma área de elevada complexidade ambiental, onde estão instaladas comunidades tradicionais, pescadores e cerca de 400 famílias quilombolas. Maicá é um Santuário ecológico, berçário natural de espécies únicas da fauna aquática e aves amazônica, morada de mais de 1500 famílias de povos tradicionais. Além de ser um polo de visitação turística e fonte de renda para as famílias que vivem primariamente da pesca, e que contribuem com 30% do abastecimento de peixe da cidade.
Para a arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), “o Lago do Maicá é um ecossistema extremamente rico, mas também muito frágil e com uma grande dinâmica de formação (terras caídas, terras em formação, aberturas de furos, etc.). A presença de grandes navios (em função de um eventual porto), que provocam importantes deslocamentos de água e alteram a dinâmica das correntes fluviais, pode levar à destruição acelerada das várzeas mais baixas, onde moram muitas comunidades tradicionais. Acompanhamentos já foram realizados no rio Madeira, outra região de várzea, mostrando o impacto das balsas e navios. Além disso, a região do Maicá é extremamente importante para a arqueologia, pois abriga o sítio arqueológico mais antigo conhecido do município, o Sambaqui de Taperinha, de 8 mil anos. Também temos um grande número de sítios mais recentes (que possuem entre 2000 e 500 anos) que ainda estão sendo mapeados, muitos deles identificados pelas manchas de Terra Preta. Na área mais alta ainda temos presença de comunidades indígenas. A história dessa região não para por aí, ocupações quilombolas estão presentes desde o século XIX, com a adição de nove territórios reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares na margem do Maicá/Ituqui”, declara Py-Daniel.
Séculos de história
Localiza-se no Lago do Maicá um dos ambientes de maior biodiversidade do Município de Santarém, que é uma das cidades mais antigas do interior da Amazônia. Santarém foi fundada pelos padres jesuítas, em 1661, durante o processo de colonização portuguesa na região. A sede municipal fica localizada diante do encontro das águas dos rios Tapajós e Amazonas. Em 1849 a cidade serviu durante três anos de sede das pesquisas dos naturalistas Bates e Wallace, onde se estima que ao final de sua expedição coletaram mais de 14.000 espécies de animais e insetos. Desde sua fundação Santarém foi um polo produtor estratégico começando pela produção do cacau, pecuária, extrativismo, borracha, juta e atualmente a monocultura da soja. Localizada a 475 milhas do Oceano Atlântico, sua posição geográfica é estratégica para o escoamento da produção de soja, seja pela rodovia BR-163, pela hidrovia do Tapajós ou pelo Rio Amazonas chegando ao Atlântico.
A construção da zona portuária na região do Lago do Maicá faz parte da estratégia das empresas e produtores de soja da região para o escoamento do grão oriundo do Mato Grosso pela região Norte do país, precisamente através do eixo Tapajós -Teles Pires.
Pedro Martins, da Organização de Direitos Humanos, observa que “os proprietários de soja começam a aparecer num processo de usurpação das terras dos camponeses. Esses proprietários, geralmente vindos de outros estados, iniciam cultivos extensos na região do Planalto de Santarém. A Embraps surge nesse contexto, a partir de proprietário de soja na região do Mato Grosso que tem como interesse o escoamento da soja produzida em Santarém, mas que também vê um potencial lucrativo enorme na construção de portos”, afirma Pedro Martins à Terra de Direitos.
Para o padre e ativista amazônida, Edilberto Sena, o processo tem início quando “a Cargill, uma empresa multinacional, viu que Santarém era um local estratégico para baratear o preço da exportação da soja do Centro-Oeste brasileiro. Políticos locais e até parte da sociedade acreditaram que o porto da multinacional traria emprego, renda e desenvolvimento, uma armadilha para a população. Tudo isso é grave prejuízo para a sociedade santarena. Os moradores dos bairros periféricos, Pérola do Maicá, Área Verde, Jaderlândia, Jutaí e mais cinco outros vão lidar com uma grande avenida. Com capacidade de tráfego de 800 carretas por dia, pode-se imaginar os acidentes, e outras desgraças. Se essas populações não se organizarem, se nós não estivermos junto com elas na resistência, a destruição de nossa cidade vai se agravar, porque as autoridades não estão nem aí com o respeito às vidas humanas. Esse porto da Embraps na Área de Proteção Ambiental (APA) do Lago do Maicá pode ser útil para os empresários, mas trará graves prejuízos para o ambiente e para os moradores de Santarém, como já acontece com o porto da Cargill”, sinaliza o ativista.
Três empresas visam construir empreendimentos portuários no município: o Grupo Cevital, da Argélia, a empresa CEAGRO e a Embraps. O caso da empresa Embraps é significativo, pois seu licenciamento ambiental foi suspenso na justiça numa ação na Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará. A petição partiu dos povos e comunidades tradicionais que vivem na região do Lago do Maicá junto ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público Estadual (MPE), que ajuizaram uma Ação Civil Pública em contra as ações da Embraps. Na ação foi concedida liminar suspendendo o processo de licenciamento ambiental do Terminal de Uso Privado da Embraps até que fosse realizada a consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais que serão atingidos pelo empreendimento. Em recurso ao Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF1) a liminar foi mantida e o licenciamento ambiental do porto permanece suspenso.
A Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) realizou estudo e produziu um Relatório Técnico a partir das falhas detectadas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Estação de Transbordo do Lago do Maicá, apresentado pela Empresa Brasileira de Portos (Embraps). Contrariando o estudo da Embraps a equipe multidisciplinar da UFOPA demonstra os danos ambientais e humanos, que, se não forem sanados, colocarão em risco as populações de peixes e fitoplâncton do Lago do Maicá, com danos irreversíveis à vida dos humanos e não humanos da região.
Para o professor do Instituto de Biodiversidade e Floresta (Ibef/Ufopa), Jackson Rêgo Matos, “a grande preocupação com a construção do porto não é só com o Lago Maicá, mas com toda a cidade de Santarém e região do Rio Tapajós. Essas áreas, incluindo a praia de Alter do Chão, terão suas paisagens afetadas, tanto pela passagem de caminhões circulando por toda a cidade quanto pelo tráfego de comboios de balsas por aquela região. Esse movimento logístico, certamente, acarretará em mais poluição atmosférica, visual, sonora, além da perda do patrimônio arqueológico, visto ser Santarém a cidade mais antiga pré-colonial do Brasil, a qual abriga um sítio arqueológico dos mais expressivos das Américas.
Ressalta-se que a bacia do Tapajós é a quinta maior bacia tributária da Amazônia e abrange aproximadamente 492.000 km2, o que, por si só, justificam políticas públicas que garantam a manutenção desse patrimônio para usufruto de suas populações, e não somente dar segurança jurídica aos empreendedores, como quer alegar o prefeito, Nélio Aguiar, para justificar o desrespeito dos vereadores aos trâmites constitucionais do plano diretor construído com a participação popular” explica Rêgo Matos.
Vozes autônomas
Como bem aponta a reportagem do portal Brasil de Fato o modo de vida dessas comunidades está em risco por um desejo alheio às necessidades delas: a busca por um caminho mais curto para a soja brasileira sair do país. Com a construção do porto, seria possível diminuir em cerca de 800 quilômetros o trajeto feito por terra pelos grãos que saem do Mato Grosso e, atualmente, necessitam passar pelo Porto de Santos. A alternativa de passar pelo Porto do Maicá, em Santarém, encurtaria em sete dias o tempo que os navios levam para chegar à Europa. No entanto, a voz das populações locais precisa ser ouvida, uma vez que “os grandes beneficiados com a construção do porto são exatamente os grandes empreendedores. Não existe uma preocupação de que a gente está impedindo o progresso, na realidade nós ajudamos no desenvolvimento e progresso de uma forma sustentável. Por que? Porque a gente trabalha com a pesca. E se construindo o porto isso aqui vai acabar” destaca Mário Pantoja, liderança Quilombola na região do Lago do Maicá.
Essa dinâmica de progresso vai na contramão do que o mundo tem discutido, fato muito bem posicionado pelo ativista ambiental, Padre Guilherme Cardona, ao afirmar que “esse modelo de desenvolvimento está criando cidades insustentáveis e uma dinâmica que se tem hoje, em todo o mundo é como criar cidades sustentáveis para que a população e o desenvolvimento possam caminhar juntos”.
Apesar de serem defendidos como obras para desenvolvimento da região, os projetos dos portos atingem nove bairros da cidade onde vivem comunidades tradicionais que se estabeleceram na área urbana após uma série de deslocamentos forçados pela ausência de políticas públicas. A construção do porto, além de não ser aceita, compromete a própria sobrevivência das pessoas que ali vivem, como afirma Dona Sebastiana, pescadora no Lago do Maicá avalia: “Ninguém concorda com isso (a criação do porto). Porque a gente precisa do Lago. Porque daqui mais uns tempos você não tem mais o peixe pra pegar, porque isso aqui vai ser aterrado e os peixes vão sumir daqui”. O mesmo questionamento faz o quilombola João Lira.
“A pergunta é: por que um porto na área do Maicá? Pra quem vai trazer benefícios? Pro povo da região? Eu creio em nenhum benefício; benefício zero”. Esses posicionamentos sinalizam que as populações locais não concordaram com a construção desse megaempreendimento, visto que a sobrevivência de todos está comprometida, está em perigo, tanto das pessoas quanto do meio e da biodiversidade que ali resiste.
Pensar o futuro da região amazônica diante do quadro de ameaças ambientais, sociais e culturais com que a região se depara é necessário em face da agressão virulenta do capital externo. Como afirma o padre Edilberto Sena, “a disputa pelo território (terra, floresta, rios, subsolo e povos) está cada vez mais agressiva. Nossa região, Oeste do Pará, é um exemplo do que ocorre em toda a Amazônia. Aqui, são 70 mil hectares de invasão do plantio de soja com intenso uso de agrotóxicos; a invasão de portos graneleiros para exportação de soja do Mato Grosso, são 23 portos construídos e em construção, no rio Tapajós, uma ferrovia de 930 km de extensão entre Cuiabá e Miritituba, no Tapajós, são sete hidroelétricas previstas no rio Tapajós. Por fim a cidade de Santarém, cidade polo para toda essa exploração, está sendo ocupada por prédios de 20 andares, que expulsa os moradores do centro para periferias, num inchaço da cidade, hoje com 300 mil habitantes”.
Até quando o poder econômico vai corromper os poderes executivo e legislativo para burlar leis internacionais em prol de uma insignificante parcela de acionistas que não respeita os biomas e povos amazônicos? Até quando a Floresta amazônica ficará a mercê de vereadores, políticos e empresários que formulam leis na calada da noite para prejudicar o social, agredindo comunidades, povos tradicionais e o meio ambiente, com a devastação em prol da monocultura tóxica da soja, com a desculpa de equilibrar a balança comercial nacional?
Certamente Bates e Wallace não aprovariam a decisão tomada pela Câmara de vereadores de Santarém, como bem disse Henry Bates depois de passar 11 anos documentando a beleza dos trópicos: “Fui obrigado, por fim, a concluir que a contemplação da natureza não basta para o coração e mente humanos”. Ou como diria o escritor Brasileiro Euclides da Cunha, ao descrever a região durante sua visita em 1905, “A Amazônia é a última página ainda a escrever do Gênesis”.
Se depender dos vereadores santarenos, os últimos redutos da biodiversidade mundial serão restritos aos registros dos livros de ciências naturais de Bates e Wallace, incorporados nas prateleiras dos livros de história como um passado que não existe mais.