A partir da proposta do “melhoramento de pastagens” em zonas de matos resultantes dos últimos fogos florestais, integram-se essas pastagens – que acumulam funções de corta-fogos e/ou previnem os ditos – num mais vasto Plano de desenvolvimento local (PDL), endógeno, dinâmico e sustentado, o qual serve os ecossistemas e propicia a fixação de populações nas regiões de montanha do Norte e Centro do país.
O crescimento exponencial de áreas incultas e matos (vegetação lenhosa espontânea) derivados dos grandes fogos florestais de 2017, somados a idênticas áreas acumuladas em anos anteriores – o Inquérito Florestal de 2010, sobre as superfícies do uso do solo no Continente, já apresentava 32% de matos e pastagens (contra 35,4% para a floresta e 24% nos usos agrícolas) – oferecem um cenário propício, senão até um convite, às inovações no reordenamento das áreas dos ditos matos. Seria um reordenamento desejavelmente diversificado nas zonas de montanha do Norte e Centro do país, onde se poderia então fomentar a silvopastorícia (cuja tradição entre nós se tem confinado aos montados do Sul), e fomentar-se-ia sobretudo o pastoreio extensivo em mosaicos não florestados produtores de pastos pobres espontâneos, ou, preferencialmente, de pastagens melhoradas. É uma intervenção urgente, centrada nas zonas de montanha, que não pode ser adiada, e a qual competirá: a) sobretudo ao poder local (municípios e juntas de freguesias), a quem cabe o seu enquadramento institucional (e fomento e otimização das iniciativas individuais e coletivas); b) mas também às micro iniciativas privadas e demais explorações pecuárias ou pastoris, médias e pequenas, as já (ou ainda) existentes e aquelas outras que poderão vir a ser criadas (ou expandidas).
O Desenvolvimento Local
Tais iniciativas – não confinadas apenas a ovinicultores, bovinicultores e proprietários florestais ou agrícolas (os donos das áreas de matos) – reclamariam: a) as inevitáveis ajudas financeiras (comunitárias, de sustentabilidade ambiental, etc.), matéria que não cabe neste artigo; b) um complementar, prévio e expresso apoio da parte do poder central – dado o grande poder económico dos interesses florestais já instalados, e dos que não preveem retirar da futura pastorícia rendimentos equivalentes ao propiciado pela floresta. Esse apoio estatal, corajoso, revestir-se-ia de grande significado político, económico e social: o Estado deixaria de privilegiar, e isolar ou acantonar, a “questão florestal”, a qual seria – finalmente – inserida nos Planos de Desenvolvimento Local. Estes são transversais em matéria de conhecimento técnico e científico, pois convocam os geógrafos, economistas e os investigadores das várias ciências sociais, e não apenas os silvicultores e demais investigadores das ciências naturais. E são também transversais no organograma do governo: que convocariam então vários Ministérios (Secretarias de Estado), que imporiam diretrizes ou limites à atuação dos poderes oficiais (e “grandes interesses”) locais.
De notar que a entidade que gere ou coordena um melhoramento local poderá variar consoante os contextos. Um Plano de desenvolvimento local (PDL) não é forçosamente gerido por uma Associação de desenvolvimento local (ADL), onde imperam os locais ou residentes. A gestão do PDL, tal como a definição das suas estratégias, poderá envolver uma “parceria local” entre a ADL, o poder local e os diversos interesses privados locais (empresas, diversos tipos de associações), as micro-iniciativas, etc. Há que investir em novos padrões de organização: nas redes horizontais de interação, ou de parceria, de modo a constituir as novas instituições locais situadas numa esfera entre o Estado e o Mercado – como propõe a Economia Institucional. Das várias lógicas e das diferentes perspetivas, complementares entre si, emergirão sinergias de governança, centradas em um ou em mais objetivos, a implementar sobre um mesmo território “local”. Aqui poder-se-iam inserir as pastagens melhoradas, sobre mosaicos não florestados, e do interesse de explorações pecuárias e dos proprietários florestais. Em si, isoladamente, as pastagens e o pastoreio extensivo não justificariam porventura um PDL, ou sequer o Desenvolvimento local de base comunitária (DLBC). Mas elas poder-se-iam inserir num projeto gerido por uma parceria local, onde se englobam necessariamente os técnicos com a reconhecida experiência e o conhecimento científico nos campos pertinentes.
“Local” pode significar coisas diferentes: a aldeia, uma freguesia, um conjunto de freguesias vizinhas, um concelho ou um conjunto de concelhos vizinhos (ou serras vizinhas). A delimitação de um território “local” (sobre o qual incide um PDL) não terá necessariamente de coincidir com fronteiras administrativas. Mas algumas iniciativas locais carecem no entanto do apoio do poder central. Ora o facto de atualmente uma mesma Secretaria de Estado juntar as Florestas e o Desenvolvimento Rural não constitui à partida qualquer garantia ao fomento do pastoreio extensivo. É antiga e ainda enraizada (entre silvicultores e proprietários florestais) a posição que advoga o antagonismo entre a pastorícia e a floresta. Levará tempo a mudar esta tradição – vigente nas montanhas do Norte e Centro do país. Nos povoamentos já adultos a silvpastorícia é viável sem causar danos na floresta. Mas neste texto apenas se propõem os mosaicos de pastagens nas faixas não arborizadas, de modo a compartimentar a floresta, e prevenindo fogos ou com a função de corta-fogos. Sobre o desenvolvimento local (em zonas de montanha) são instrutivos os casos suíços – Herzog e Seidl (2018), Sauvain (1988), Wiesmann et al. (2005) – pois trata-se de um país onde persiste a remota tradição da democracia direta.
Território, Redes Sociais, Parcerias Locais.
Porque já não é aceitável um crescimento económico sem o desenvolvimento “local” – como a experiência desde os anos 1980 tem vindo a ensinar (em diferentes quadros geográficos) face ao crescimento das assimetrias territoriais, económicas e sociais – os ditos Planos – que pretendem servir os ecossistemas e materializar uma “melhoria” da qualidade de vida das populações locais – já não podem equacionar cada “parcela” do território nacional como um mero suporte físico de uma política económica “sectorial” (social ou agrícola ou florestal ou industrial) a cargo de uma “corporação” de técnicos. Ao invés, a dita “parcela” passaria já a funcionar como um todo integrado – ao mesmo tempo sub-regional, natural e cultural – ou como um verdadeiro agente ativo, dadas as suas especificidades quanto aos recursos naturais e sociais, ou seja, as características socioculturais de quem lá habita, as diversas redes sociais passíveis de fomentarem um determinado esforço coletivo, que é impossível de replicar – em termos de processo e dos resultados – em qualquer outra “parcela” do território e da formação social.
Nos próprios Planos regionais de ordenamento florestal (PROF), a cargo do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), ainda não participam ativamente os representantes dos poderes municipais e dos “interesses locais”. Embora o recente decreto-lei n.º 12 (2019.01.21) já transfira para os Municípios algumas competências do ICNF – quanto a florestação e a reflorestação, desde que o PDM seja adaptado ao PROF e a câmara municipal disponha de gabinete técnico florestal (GTF). Algo idêntico ou aproximado poderá portanto vir a acontecer em breve a respeito das pastagens e do pastoreio – desde que, bem entendido, o município disponha dos financiamentos e dos técnicos adequados. Aliás, o Programa de Desenvolvimento Rural – PDR 2020 (art.º 28), Medidas Agroambientais (Ação 7.7), já previa o apoio aos lameiros e ao pastoreio extensivo (Portaria n.º 50 de 2015.02.25); e, ainda (Ação 7.9.1), a implementação dos mosaicos não arborizados para produção de forragem (apoio ao pastoreio extensivo). De lameiros e forragens vem a alimentação do gado nos finais do outono e no inverno, mas os referidos mosaicos também poderiam funcionar como pastagens permanentes.
O que distingue o pastoreio extensivo da transumância é o facto de o primeiro envolver a deslocação do rebanho num mesmo território: entre o vale (inverno) e a montanha (verão), por exemplo. Também é denominado “transumância vertical”. Na transumância (dita “horizontal”) percorrem-se grandes distâncias entre duas regiões completamente distintas, na busca dos pastos de verão ou de inverno. Hoje os gados já se deslocam em comboio ou em camião.
Este tipo de desenvolvimento local, o qual se pretende endógeno (“a partir de baixo”) – em contraste aberto com o anterior paradigma (“a partir de cima” ou “do centro”) – reclama o concurso de muitas vontades: a dos próprios residentes (a cujas aspirações é preciso atender), as dos políticos locais e as dos técnicos. A estes caberão as análises prévias – quanto à viabilidade socioeconómica das “novas” explorações ou respetivos e múltiplos valores acrescentados: em matéria económica – doméstica e territorial; e em matéria de sustentabilidade ambiental, biodiversidade e proteção dos solos. Além de funcionarem como corta-fogos de zonas vizinhas florestadas – o que é do interesse dos proprietários florestais – as novas alternativas florestais e pastoris – porquanto já adaptadas às novas “realidades” climáticas e sociais, ou porque associadas a novas ou a melhoradas áreas de pastagens, também previnem os incêndios além de viabilizarem a melhoria dos rendimentos pecuniários locais. O que constitui um elemento essencial para se fixarem as populações em regiões “deprimidas”, uma ambição semi-secular e já expressa por sucessivos governos. Os Parques Naturais, porque geridos por técnicos atentos aos problemas ambientais, apresentam-se como as zonas privilegiadas para a implantação destas experiências piloto e para a sua posterior difusão nas zonas vizinhas: face às mudanças climáticas em curso e seus previsíveis resultados – os invernos secos (sem chuva) não são propícios ao crescimento ótimo das pastagens primaveris – temos de saber quais são os tipos de herbáceas mais adequadas a cada região, altitude, clima, etc..
Esta proposta de desenvolvimento local, conjugada com o pastoreio extensivo na montanha, irá necessariamente reclamar a mobilização de uma parceria local, isto é, a cooperação entre os poderes locais, os técnicos ou investigadores (sociais, florestais, etc.) dos Institutos, das Universidades e Politécnicos e, sobretudo, a sociedade civil local, as empresas e as associações das populações residentes na área de montanha onde decorre a vasta e longa intervenção. Ao invés da floresta, que reduz os recursos naturais pastoris e que obsta à mobilidade dos rebanhos, cujo total de efetivos se reduz fortemente (no século XX isso fomentou o êxodo rural), o pastoreio extensivo – se economicamente rentável ou ambientalmente subvencionado – fixa as populações (no território) já que reclama (um capital inicial público ou privado e) o trabalho intensivo e diário dos montanheses. Então, na procura da subida dos rendimentos, não acompanhada por uma descida da produtividade, será necessário alcançar-se o tamanho ótimo da exploração pecuária.
Pastoreio Extensivo em “Montanhas aos Mosaicos”
A distribuição dos mosaicos de pastagens melhoradas entre os talhões florestais e nas zonas de matos excede a sua imediata utilidade anti-fogos. É para um grandioso plano ambiental e paisagístico que se aponta, onde o tradicional interesse do uso do solo centrado na intensificação das produções florestais e agrícolas (o fim dos pousios) cede lugar ao interesse na biodiversidade, na sustentabilidade ambiental e na multifuncionalidade das paisagens rurais, nas quais têm lugar as pastagens e o pastoreio extensivo.
Face à tragédia dos fogos rurais de 2017, e após sucessivas alterações à Lei n.º 124 de 2006.06.28 sobre o sector florestal, mais uma vez o governo (Lei n.º 76 de 2017.08.17 e Resolução n.º 161 de 2017.10.31) procurou impor, afinar e acrescentar uma vasta rede de faixas de gestão de combustível, ou faixas corta-fogo, a fim de compartimentar as maiores superfícies florestadas. Ou seja, mandou romper as monoculturas florestais com 3600 km (1200 em áreas geridas pelo Estado e 2400 nas áreas privadas) de faixas ou estradões nus (sem árvores) cuja largura não será inferior aos 125 metros, de modo a que – em caso de fogo – tais faixas ou aceiros impeçam a propagação das chamas. A ambição estatal, neste domínio, já se estende portanto à globalidade da área florestal do país (Continente), restando todavia esclarecer se aí se incluem as zonas dos matos derivados de incêndios florestais (e que aguardam reflorestação).
Ora, acaso dotadas de uma largura um pouco superior à indicada, as referidas faixas – implantadas em zonas florestais de montanha do Norte e do Centro do país, quer nas áreas baldias, quer onde impera a propriedade privada – poderiam vir a propiciar uma multiplicidade de Mosaicos. Estes, otimizando a função de tais vias, seriam melhor aproveitados em múltiplas vertentes: desde a ecológica, ambiental e económica até à social e local, acaso fossem convertidos em espaços de “pastagens melhoradas” para ovinos ou bovinos. Ou pastagens intercalares e vastos espaços para o aproveitamento forrageiro nas zonas de solos apropriados entre os talhões florestais. Adicionalmente, e sempre que viável, dever-se-iam também distribuir pelos ditos mosaicos uma rede de pontos de água (ao dispor dos bombeiros e/ou de meios aéreos), junto aos quais poderiam ser construídos bebedouros para o gado. Esta infraestrutura pastoril seria então, também, um meio logístico ajustado à silvopastorícia, para periodicamente se introduzirem rebanhos de caprinos sapadores a devorar (limpar) os matos sob coberto florestal – biomassa combustível cujo volume não cessa de aumentar (pois já findou há muito o grande consumo doméstico de carvão e lenhas), o que potencia os frequentes incêndios na floresta. E cujas causas sociais adicionais – mais importantes do que as ambientais (no ano 2017 a área florestal ardida em Portugal foi quatro vezes superior à área ardida em Espanha) – são triplas: a ausência de gestão (e “limpeza”) nos espaços florestais “públicos”, isto é, comuns (baldios); somada ainda à desantropização (vazio humano) nos espaços privados, naqueles onde é alto o absentismo dos proprietários (florestais e agrícolas). De adicionar a ação criminosa e a criminalizada: o fogo-posto (por vingança, maldade gratuita, razões mercantis ocultas) e a má gestão involuntária das queimadas (para a regeneração das pastagens). Estas são um costume popular já plurimilenar – que poderá ser (bem ou mal) controlado, mas nunca proibido.
Floresta e Matos: Por uma Nova Paisagem de Mosaicos
Os Mosaicos para pastagens serão um grande desafio ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF),, o qual já aponta para os 11 200 km de uma rede final de “faixas” a construir (mas até meados de agosto de 2018 só tinham sido construídos 2 400 km). Serão sobretudo um enorme desafio aos Municípios, aos quais já cabe a magna tarefa de definirem localmente as “faixas de gestão de combustível” nos respetivos Planos diretores municipais (PDM), a articular com os Planos regionais de ordenamento florestal (PROF), e com os “planos regionais de ordenamento territorial”. Tudo isso, em vários municípios e/ou freguesias de montanha, a articular também com deliberações dos Conselhos de Compartes dos baldios, aos quais o pastoreio pode interessar como uma via complementar de uso dos solos, de fixação de populações no interior do país “rural” e de obtenção de acrescidos rendimentos pecuniários – pastoris, silvopastoris – para os investimentos em equipamentos coletivos ao nível de aldeia ou freguesia. O aproveitamento coletivo (não privado nem público) dos recursos naturais espontâneos dos baldios (“commons”, “montes comuns”) constitui uma área de pesquisa dinâmica, que contraria ideias feitas nas economias de mercado e desafia e entusiasma equipas multidisciplinares de investigadores um pouco por todo o mundo; mas ainda com um débil eco entre nós. Ora Portugal, país “pequeno” embora diversificado, geográfica e economicamente, reclama políticas de desenvolvimento local também diversificadas.
No exemplo ainda recente da Extremadura espanhola onde, após o grande incêndio de 2015 na Serra da Gata (vizinha da portuguesa Serra da Malcata), foi implantado o Proyecto Mosaico, podemos colher ensinamentos para o interior montanhoso de Portugal. Este projeto estende-se a duas regiões serranas contíguas, a Sierra de Gata e Las Hurdes, que fazem parte da Cordilheira Central – que é a fronteira entre as duas Ibérias: a do Norte montanhoso e a do Sul plano, onde está incluída a maior parte da Extremadura. Na Gata domina o sistema de dehesa/montado onde já é tradicional a prática da silvopastorícia. Nas Hurdes, a norte (na fronteira com Castela-Leão), domina o pinhal (desde anos 1940), olival, castanheiros (já poucos) e cerejeiras, além dos rebanhos caprinos. Nas duas zonas foram rasgados mosaicos para pastagens, embora o Mosaico não se centre apenas na floresta: não se limita a romper os aceiros nem a combater os monocultivos florestais. O Mosaico centra-se na promoção das alternativas – florestais e agrícolas e pecuárias ou pastoris – adaptadas às novas realidades climáticas, económicas e sociais (desertificação humana do interior). Uma ênfase especial é atribuída aos “Planos de Pastoreio” e às respetivas pastagens, que irão favorecer a prevenção dos incêndios e/ou que assumem a função de corta-fogos, além de visarem a desejável obtenção de valores acrescentados – em termos ambientais e pecuniários – para as populações serranas (e não só). Este projeto, coordenado por uma parceria da Junta da Extremadura, Universidade da Extremadura e sociedade civil da Sierra de Gata e Las Hurdes, envolve a mobilização das populações locais, que participam ativamente em cursos e workshops além de palestras, onde os saberes técnicos e científicos se procuram ajustar aos anseios e aos saberes dos residentes locais. As “diretivas” não se limitam portanto a descer “de cima para baixo”, porque também procuram incorporar os costumes e saberes empíricos testados desde há muito pelas populações locais.
O Pastor e o Sistema Pastoril Extensivo
Este método, o que ajusta ciência a empíria, afigura-se o mais adequado na atividade do pastoreio – diferente da pecuária estabulada, ou intensiva, já integrada na empresa agrícola (doméstica ou industrial). De facto, os técnicos – de Espanha ou de Portugal – estão aptos, desde há muito, a transferirem conhecimento novo ou atualizado quanto à “melhoria” das pastagens e das espécies pecuárias autóctones, e quanto às espécies florestais mais adequadas em cada território. Mas são os residentes locais que (regra geral) ainda detêm os conhecimentos pastoris “tradicionais” – mas a reclamar serem adaptados a novos contextos ecológicos, económicos, tecnológicos. Um tema para o qual não existem escolas práticas (Portela, 2015) – pois o mercado e a ciência (não só veterinária) fomentaram a pecuária industrial (intensiva e estabulada) – tema que, por isso mesmo, reclama um experimentalismo a adicionar ao saber empírico acumulado dos velhos pastores ainda existentes – desde que eles o transmitam a novas gerações.
As tradicionais economias de montanha – muito diferenciadas entre si consoante as situações geográficas, altitude e condições naturais – apresentavam analogias de tipo organizativo, de acordo à dimensão da exploração familiar, e em regra combinavam uma agricultura de subsistência e uma produção animal já orientada para os diversos mercados (carne ou leite e couros, peles ou lãs). Era portanto do gado – alimentado em campos privados na aldeia e, no longo verão, nos vastos espaços comuns na alta montanha – que provinha a moeda indispensável à manutenção e/ou reprodução da “casa” ou família. Daí que qualquer ofensiva – a florestal às pastagens e a mercantil às produções [o declínio do mercado da lã (frente ao algodão), no século XIX, do mercado do pergaminho (face ao papel), nos séculos XV-XVI] – conduzisse ao desmoronamento do sistema pastoril. Cuja condução, guarda e maneio do rebanho é muito mais árduo e envolve maiores distâncias diárias percorridas no caso dos ovinos e/ou dos caprinos do que no caso dos bovinos serranos atlânticos. Estes ainda vivem, nos “montes comuns”, em completa liberdade (sem pastor) durante nove meses por ano (“tempo quente”). Nos montes divididos e individualizados cada proprietário é o pastor das suas vacas (semi-estabuladas) nas respetivas “sortes” ou parcelas de monte nu (sem árvores).
A inovação na arte pastoril dependerá acima de tudo do seu enquadramento económico e social – não apenas das técnicas – e de uma efetiva mobilidade dos rebanhos, do respetivo tamanho rentável e das áreas de pastos e forragens disponíveis. Não basta munir de telemóvel e de jipe (moto 4) um “velho” pastor para obtermos um “novo” pastor, sobretudo no caso dos rebanhos ovinos e caprinos. O jipe permite, adicionalmente, que o pastor vá dormir cada noite em domicílio. Isso implicará a instalação de cercas móveis, a construção de abrigos para o gado na serra, etc., sempre que a distância até ao estábulo ou ao local de ordenha assim o exija. É neste vasto quadro que se impõe uma divulgação dos resultados alcançados pelas novas empresas pastoris (sobretudo das rentáveis), e das respetivas indústrias transformadoras com que estão articuladas (a nível horizontal e “local”), para se passar ao posterior e indispensável comparativismo analítico.
A transumância dos rebanhos em Portugal está praticamente extinta (ao contrário do que acontece em Espanha) e a emigração desde 1960 acabou gradualmente com as migrações internas sazonais dos montanheses do Norte e Centro do país. Mas a figura do pastor e respetiva arte pastoril não são relíquias (do passado) condenadas a desaparecer das montanhas ibéricas. Zonas há – caso da Serra da Estrela – onde “já se encontra muita gente nova a abraçar esta profissão” ou “negócio atrativo” (Martinho, 2016), cenário que se opõe à perspetiva anterior, que enfatizava a idade avançada dos pastores e a desmotivação ou a falta de prestígio da atividade, aos olhos das gerações mais novas. Todavia, semelhante negócio só é “atrativo” na condição do pastor ser o proprietário de um rebanho economicamente rentável: com mais de 80 cabeças (não chega às 20 “cabeças normais”) para o caso dos ovinos de leite (Gulbenkian, 1993; Martinho, 2016). Ou seja, a rentabilidade ainda permanece confinada a uma minoria de explorações na dita zona (Parque Natural). E porque o efetivo total de cada exploração pecuária tem de estar continuamente equilibrado com a extensão das pastagens ao seu dispor, (terminada a transumância de longo curso) o fomento pastoril “local” terá de se iniciar forçosamente a partir de um substancial aumento das áreas de pastagens melhoradas. Caberá depois a cada pastor o maneio do ciclo reprodutivo do respetivo rebanho, ajustado às necessidades alimentares, não pode ter mais bocas na época em que os pastos faltam, sob o risco de falência da exploração – a compra de feno (penso) caro ou a venda dos animais “excedentários”.
Nas últimas décadas – as mesmas em que decorreu uma profunda alteração nos conhecimentos sobre o desenvolvimento local – assistiu-se também a um levantamento dos sistemas pastoris disseminados pelo globo: povos nómadas, transumância, pastoreio extensivo. Isso propiciou uma outra revolução no conhecimento – sobretudo quanto à interação de pastoreio, floresta (silvopastorícia) e sociedade – três temas que anteriormente não se costumavam conjugar no espaço da montanha ocidental europeia. Ver a este respeito algumas das recentes abordagens historiográficas (Brumont, 2008). Acerca dos diversos sistemas pastoris mediterrânicos e atlânticos, quer os colóquios internacionais que se multiplicam, quer as teses académicas nos diferentes campos científicos (de antropólogos, ambientalistas, ecologistas, silvicultores, veterinários, zootécnicos), formam em conjunto uma vasta base de dados (parte da qual digitalizada) que deveria ser colocada ao acesso dos práticos: os pastores e sobretudo as associações ganadeiras ou pastoris, além das associações dos proprietários florestais e daquelas que se dedicam ao desenvolvimento rural. Exemplos empíricos devidamente testados ajudam à decisão ou à estratégia de qualquer associação. Por seu lado, a montanha continuará a potenciar os pastos e o pastoreio, extensivo ou outro, segundo “tradições” que incorporam sucessivas inovações. O pastoreio constitui um modo de vida, relativamente autónomo da agricultura, embora em complemento das múltiplas produções que são próprias das economias de montanha. Não exóticas, mas dirigidas a nichos de mercado – a turistas estrangeiros e nacionais – essas produções não visam alcançar quantidades ditas exponenciais, as que viabilizam os baixos preços. São produções caseiras que alcançam altos graus de excelência. Estamos face a um vastíssimo leque de atividades – produtivas, desportivas e de lazer (turismo de natureza) – inseridas em mercados embrionários: que permitem injetar dinheiro (das vendas de bens e serviços) nas explorações domésticas e/ou empresas da montanha. Estas, pecuniariamente, já não podem continuar a depender de remessas/reformas da emigração e dos certames ou feiras de periodicidade anual.
Nota Final
O inverso – insistir na política tradicional (e estatal) para a montanha – substituir os gados pela floresta – afigura-se hoje a atitude – ecológica, económica, demográfica e social – a mais arriscada aos interesses dos próprios proprietários florestais, a quem os fogos não dão descanso e contrariam com frequência a desejada rentabilidade. Mas essa é também a política mais inadequada aos interesses de grande parte dos montanheses – cidadãos com direitos, que têm sido ignorados, para mal da coesão ou integridade do “todo” social e territorial. A floresta não pode ser adversa à árvore e ao homem. E a macroeconomia não pode opor-se às microeconomias de vilas, aldeias, empresas e explorações familiares, disseminadas por todo o território, mas nem sempre contabilisticamente agregadas. Persistir na florestação intensiva e de rápido crescimento é um claro apoio às indispensáveis indústrias competitivas e exportadoras. Mas isso comporta duas contrapartidas: a de pactuar com a desertificação da montanha e a manutenção da via emigratória, ambas propícias ao flagelo dos fogos. Contra os quais, afirma-se, é necessário: formar mais técnicos de combate ao fogo; e de se investir improdutivamente, em cada ano, em meios técnicos (aéreos e terrestres) para idênticos combates. São avultadas despesas à custa do orçamento do Estado; e que se poderiam transferir para outros setores sociais e económicos que carecem há muito de efetivo investimento/desenvolvimento, não só em zonas de montanha. O pastoreio tem cabimento nas políticas de prevenção e de gestão florestal – em regra mais baratas do que as despesas anuais com os incêndios, além de servirem os ecossistemas e ainda propiciarem rendimentos ou postos de trabalho permanente na montanha – inserindo-se assim na recuperação económica ou desenvolvimento local do “interior”. A floresta e o pastoreio são afinal dois grandes pilares da conservação e desenvolvimento da montanha na renovada, reformada e humanizada paisagem (de mosaicos) que urge construir – uma magna tarefa que é nacional e “local” ou que deveria unir Todos: decisores centrais e dos poderes e das parcerias locais (e não apenas os indispensáveis “florestais”). Talvez uma estratégia a incluir de facto, não apenas no papel ou na lei, numa futura ou próxima reforma florestal ao serviço do desenvolvimento regional e local.
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