Estimado secretário-geral do Conselho Nacional da Água
Vai perdoar-me algum humor, quiçá alguma acidez, neste meu escrito. Não o conheço pessoalmente, pelo que utilizo este meio para lhe fazer chegar alguns reparos sobre a entrevista que concedeu à Lusa, divulgada no dia 25 deste mês. Faço-o na minha qualidade de agricultor, que utiliza água para regar. Rego, entre outras minudências, arroz e tomate que talvez cheguem à sua mesa de forma segura e a preços mais ou menos acessíveis (malditos subsídios!!), o que significa que é um homem com sorte. Se assim for, espero que lhe saibam bem, pois é para isso que cá andamos. É também por isso que regamos – e não, não é com água de graça.
Vou tentar ser breve, sem deixar de lhe chamar a atenção para um conjunto de inverdades e imprecisões (algumas quase caricaturais) que, deixe-me que lhe diga, revelam um desconhecimento inesperado da parte de quem exerce a função de V.Exa. no Conselho Nacional da Água. Fá-lo-ei, prometo, sem entrar em tecnicidades.
“… Poças Martins alertou que a “água de graça” e subsídios dados aos agricultores “são perversos” e que é preciso “uma mudança de paradigma” na agricultura portuguesa”. V.Exa. anda distraído. A água para rega, em Portugal, não é de graça (já lá vou aos subsídios). É paga e, em muitas circunstâncias, muito bem paga. A definição dos tarifários e das taxas, bem como as autorizações de captação obedecem à legislação existente. Faça o seguinte exercício: (1) pense, se para tal tiver disponibilidade, no conjunto de externalidades positivas que resultam da existência do regadio; depois (2) incorpore o valor dessas externalidades na estimativa do preço a pagar pela água (a par com a incorporação dos diversos custos e das externalidades negativas). E pare por aí. Caso contrário, poderá chegar à conclusão que a sociedade, em algumas circunstâncias, deveria pagar ao agricultor para que ele utilize água. Não sei a que paradigma se refere V.Exa., mas como é uma palavra da moda, talvez não seja relevante.
“… Segundo Poças Martins, a rega em Portugal “não é feita de forma parcimoniosa” pelos agricultores porque não se fazem contas: “Em Portugal praticamente não se paga pela água [para a Agricultura] e não se mede a água e por aquilo que não se mede nem se paga, não se poupa”, afirmou…”. Tem V.Exa. a noção da inverdade do que afirma? Se quer generalizar (que é o que faz na sua entrevista), devia V.Exa. corrigir-se: em Portugal paga-se pela água e em Portugal mede-se, e cada vez se mede mais, a água que se utiliza na Agricultura. E vou dar-lhe uma novidade que certamente lhe agradará: não só porque se mede e se paga, na agricultura poupa-se. Ou acha V.Exa. que os agricultores são estúpidos? Que se comprazem com o desperdício? Lamento, mas V.Exa. não conhece este lado do país que serve. Para além de que, as maiores ineficiências e perdas de água na rega, estão associadas a perímetros públicos (i.e., do Estado) deteriorados, que deveriam ter tido obras de reconversão significativas e não o tiveram. No regadio, tal como nas redes de distribuição para consumo urbano, os verdadeiros problemas estão nas redes primárias, normalmente públicas.
Sobre as barragens e assuntos conexos, iriamos longe, mas o espaço é pouco. Mas aqui vão algumas dicas que, V.Exa. querendo, poderá aproveitar.
“…. Neste momento não podemos estar a pedir mais barragens enquanto os agricultores não forem eficientes na rega. Não podemos estar a fazer mais barragens e depois regar por aspersão em agosto…”. Por momentos pensei que era uma tirada humorística. Só faltaria acrescentar: agricultores do meu país, regai por aspersão, mas em dezembro! E aí sim, podeis pedir mais barragens! Aqui entre nós: a rega destina-se a suprir a falta de chuva, razão pela qual, imagine-se, se rega também em agosto. E quando se rega por aspersão (que hoje apresenta níveis de eficiência elevadíssimos devido ao continuado investimento dos agricultores), é porque é essa a tecnologia mais adequada – em agosto ou noutro qualquer mês do ano.
Percebi também que V.Exa., ao contrário do que eu pensava, é um perito em agricultura e em mercados alimentares: “…. Os agricultores têm de ser mais eficientes na água, têm que escolher melhor as suas culturas. Por exemplo, como em Portugal os solos não são propícios para os cereais, que gastam muita água, Portugal praticamente não faz cereais e isso é bom, não podemos pensar que devemos ser mais autossuficientes em cereais porque não temos condições para isso…”. Vamos por partes, passando por cima da eficiência (dando-lhe a oportunidade de se informar sobre os ganhos de eficiência que os agricultores alcançaram nos últimos 20 anos). Os solos em Portugal não são propícios para os cereais, que gastam muita água? Os solos é que gastam água? Ou os cereais? Seja o que for, aqui vão umas dicas para a sua cultura agronómica: os cereais utilizam água de forma bastante moderada, e em Portugal temos alguns solos excelentes para produzir cereais. Quanto à autossuficiência em cereais, não sei de onde lhe terá surgido essa ideia (desde o Estado Novo que não ouvia falar nisso), nem o que é que ela tem a ver com a água para rega. Mas termos alguma capacidade acrescida para não dependermos tanto de países terceiros no pão que comemos, não seria mau. E olhe que o argumento da água nesta matéria é fraquinho…. Deixe lá os agricultores escolherem, em cada caso, aquilo que cultivam. Garanto-lhe que eles não são mais ignorantes que V.Exa.!
Vou saltar algumas afirmações sem sentido, para ir direito aos subsídios. “… Os subsídios pagos aos agricultores são, também, outro problema apontado pelo ex-governante: “A generalidade dos agricultores como tem a água barata e como estão, permanentemente, habituados a muitos subsídios, não são eficientes (…), os subsídios são perversos”, classificou…”. Para simplificar, que o espaço está a acabar (e a paciência também já não é muita) saiba que os “muitos subsídios a que estamos permanentemente habituados” (ainda está nesse ponto?) é o que permite que V.Exa. tenha alimentos na mesa, produzidos segundo os mais exigentes critérios de qualidade e segurança (ambiental e social) a um preço acessível. E, em simultâneo, ter um território ainda ocupado e gerido em vastas áreas, com gentes a garantirem a gestão de um conjunto de recursos que, a partir das cidades, não se gerem. Faça V.Exa. a experiência de acabar com esses malditos subsídios aos agricultores europeus mantendo as exigências de qualidade e segurança dos alimentos (incluindo aqui a exigência do uso racional da água), e verá os resultados na escassez de alimentos na sua mesa. Em alternativa, poderá sempre acabar com essas exigências de qualidade e segurança.
Exmo. secretário-geral do Conselho Nacional da Água,
V.Exa. está completamente equivocado sobre a realidade do regadio em Portugal. Mas estou certo de que, se e quando quiser, não faltarão oportunidades nem anfitriões para lhe mostrar essa realidade. Somos dos países do mundo em que se rega melhor – com eficiência mais elevada. A produtividade da água subiu de forma exponencial nos últimos 20 anos. Sim, precisamos (enquanto país) de algumas barragens mais, e não somo assim tão estúpidos (ou pelo menos tão estúpidos quanto diz serem os espanhóis) para pensarmos que, por haver água em mais algumas barragens, a podemos utilizar “à tripa forra” ou que nas barragens se dá o milagre da multiplicação da água. Os volumes de água residual que refere serão sempre bem-vindos, e a água dessalinizada também: se lhes colocar o preço de 60 ou 70 cêntimos por m3 (mais uns cêntimos para o transporte), garanto-lhe que continuará a deitá-los para o mar, em conjunto com toda a restante água que já lá vai parar. Ou isso, ou passará a pagar dez vezes mais pelo alimento que lhe chega à mesa. Ou então, mande fechar o país rural (o que rega e o que não rega, pois um depende do outro), e peça a outros que lhe forneçam os alimentos baratos de que precisa. Estes últimos meses têm demonstrado que esse caminho é muito promissor.
Termino mais ou menos por onde comecei. Não o conhecendo, não duvido que V.Exa. seja um especialista e uma autoridade mundial na área de gestão da água. É o que me dizem. Mas está completamente enganado sobre o regadio em Portugal, sobre o que é a agricultura, e sobre as relações dos usos da água com a sociedade que a utiliza. E isso é aborrecido!
Especialista defende que agricultores devem pagar pela água que usam