No parque de estacionamento do Jumbo de Sintra ouve-se uma criança pequena a falar com o pai: “põe-me ao colo que quero ver lá para dentro!”. O adulto lá acede ao pedido, levanta o filho e esta faz aquela típica “conchinha” com as mãos à volta dos olhos de quem quer ver para dentro de algo, através de um vidro. O motivo da curiosidade prende-se com a criação de Gilles Dreyfus e Nicolas Seguy, a “Jungle Box”, onde têm entrado, crescido e saído coisas como manjericão tailandês, alfaces, rebentos de rabanete ou folhas de mostarda. Confusos? O rapazinho que foi levantado ao ar também revelava uma certa confusão. Gilles, por sua vez, que estava a conversar com o Observador num banco a poucos metros desse cenário, exultava. “Está a ver, é isto mesmo que nós queremos, incitar esta surpresa e interesse!”, afirmou, de sorriso na cara.
O que está aqui em questão, portanto, é um sistema agrícola revolucionário no panorama português. A criação destes dois franceses radicados em Lisboa, essa tal caixa que mais parece um contentor de cargueiro, é, nada mais nada menos, que uma espécie de estufa altamente tecnológica onde são criados, num ambiente totalmente isolado da poluição exterior, vegetais, micro-vegetais e ervas aromáticas com recurso a uma técnica chamada agricultura vertical. O nome não deixa margem para dúvidas e é bastante explícito: trata-se de uma espécie de tabuleiros empilhados onde pequenos seres vivos vão crescendo e desenvolvendo a partir de sementes, germinadas em “climas” criados pelo homem onde tudo é controlado ao microescópio, da temperatura à humidade, da água à luz.
Tudo começou num armazém em Marvila, que ainda existe e é a base de operações desta empresa, onde Gilles passou seis meses a dormir no chão, à espera que o seu sonho de contribuir para resolver o problema de alimentação com que o mundo se depara (muita gente, pouca comida) ganhasse asas. Hoje em dia essas assas já vibram e estão tão viçosas quanto os produtos desta Jungle Greens, havendo já planos para crescer para França e Inglaterra. É assim que estes rapazes criaram algo de único (pelo menos no país): fazer com que aquilo que se pode comprar no supermercado tivesse sido plantado cuidado e colhido a poucos metros da banca onde são postos à venda. O Observador conversou com Gilles para perceber melhor de onde veio tudo isto.
Já tinha alguma ligação ao mundo da agricultura?
Basicamente nunca tive qualquer ligação à agricultura, a minha mãe vive no campo [em Ibiza, Espanha], planta uma ou outra coisa, mas nada de profissional. A minha família sempre gostou de viajar pelo mundo, eu sempre gostei muito de comer, de cozinhar e de perceber os movimentos das pessoas ao longo da história (algo que está intimamente ligado à alimentação). Durante os últimos 15 anos, em que sempre viajei sozinho, deixei-me inspirar ainda mais pela comida e pela forma como ela funciona.
Mas e daí a lembrar-se deste negócio?
Eu trabalhei na alta finança durante 10 anos e numa manhã, em 2015, comecei a ler um artigo no Financial Times sobre a crise alimentar, um estudo muito bem documentado e relatado que no final tinha uma pequena referência, umas três linhas, sobre como a agricultura vertical poderia vir a ser a solução para este problema. Logo nesse momento fiquei chocado e disse para mim mesmo: “É isto que quero fazer”. Comecei a pesquisar muito sobre o assunto, passei noites a ler sobre isto, depois das horas de expediente. Acabei por dar com um professor da Columbia University que escreveu sobre o assunto, o Dr. Dickson Despommier. Fiz de tudo para dar com o e-mail dele, lá consegui e escrevi-lhe a dizer que ia a Nova Iorque — que era mentira, não tinha viagens nem nada. Para minha surpresa ele respondeu-me quase na hora e lá fui eu. A reunião que tivemos foi parte importantíssima de toda a minha história. Ele deu-me imensos contactos de pessoas da área, tanto na Europa como nos EUA, para que conseguisse ir em frente com o meu projeto.
Que tipo de contactos? Pessoas que já exploravam a área? Outros teóricos?
Um tipo que criou um blog onde referenciava todos os esforços que estavam a ser feitos no campo da agricultura urbana. Um tipo alemão que criou uma firma que cria pequenos equipamentos semelhantes aos que temos hoje, para as pessoas poderem usar em casa. No geral, pessoas muito ligadas a este mundo, pessoas que tinham estudado com ele na Universidade e que tinha como objetivo encontrar o futuro do cultivo de comida feito de formas diferentes. Também me apresentou a alguns empresários, mas ninguém que já estivesse no ramo da agricultura vertical — nessa altura, as poucas pessoas que pudessem ter alguma coisa desenvolvida nessa área, não te revelariam nada do assunto. No fundo, sabes quando entras num circuito onde não conheces nada nem ninguém, há sempre uma pessoa que se torna o teu guia, que representa uma abertura, uma promessa. Ele fez-me perceber que se a minha “loucura” fosse correspondida com conhecimento prático e contactos, poderia ter motivação para de facto fazer alguma coisa.
E o Gilles já estava “louco” desde o início ou essa obsessão foi crescendo à medida que ia aprendendo mais sobre o assunto?
Se tivesse noção de tudo o que este projeto implicaria… Não sei… [risos] Hoje posso dizer que tem sido uma vida muito, muito louca, esta que decidi abraçar. Acho mesmo que é assim que quero viver o resto da minha vida.
O que houve de loucura, então, nessa escolha?
Quando tu chocas com alguma coisa e depois sentes quase que uma revelação sobre o que queres fazer com a tua vida nunca consegues medir, ou perceber, pelo menos ao início, todas as complicações que terás pela frente. Neste negócio há alguma agronomia, tecnologia, engenharia civil (para saberes como fazer circular água e ar)… Há grandes problemas de recursos humanos, também: Este é um mundo novo, um emprego que não existia, não tens a força de trabalho qualificada para levar a cabo este tipo de serviço. Ao mesmo tempo também tens todo um universo hiper-complexo de Inteligência Artificial e software. A juntar a tudo isto há realidade de que tens de educar as pessoas, fazê-las perceber aquilo que estás a fazer e aquilo que isso representa. Ir além do medo que têm ou dos preconceitos sobre aquilo que estão a comer hoje em dia e acham que é bom. Tens de explicar, explicar e explicar… Todo este espectro do que representa entrar nesta área altamente desafiante é algo que não imaginava, no início, mas que agora aceito completamente e tenho a certeza absoluta que é aquilo ao qual me quero dedicar.
Essa parte sobre ter de educar as pessoas: sente que tem ou teve de remar contra a maré?
Não, nem por isso…. Quer dizer, mais ou menos. Gosto sempre de ir no sentido contrário daquele por onde as pessoas estão a ir, satisfaço-me na complexidade e na descoberta, como o meu sócio, de quem eu te vou falar mais daqui a bocado. À medida que fui descobrindo todos estes elementos a minha vida foi ficando mais e mais difícil. Mas, ao mesmo tempo, quanto mais desafiante ficava, mais me apercebia de tudo o que precisaria para me especializar nisto. Foi entusiasmante!
Voltando à história de como chegámos aqui…
Sim. Então, conheci esse professor, ele deu-me imensos contacto e de repente pergunta-me: “O que estás a fazer na semana que vem?”