Em 1980, depois de mudarmos da velha casa e da velha vacaria para o novo estábulo e a nova casa junto ao Sinal, começou a vir um senhor acompanhar as ordenhas um dia cada mês. Chamava-se Serafim, era funcionário da cooperativa e era “contrastador”. No final do dia a minha mãe registava na agenda o leite que cada vaca tinha produzido.
Escrevi em 2020 no blog “Carlos Neves Agricultor”: «Segundo o dicionário, contrastador é “aquele que contrasta, que confronta, que compara”. Mas, em Portugal, é também o nome de uma profissão rara, que engloba apenas algumas dezenas de elementos em todo o país que são agentes credenciados do “contraste leiteiro”. Uma vez por mês, estes técnicos visitam as agro-pecuárias aderentes para registar a produção de leite de cada vaca ou pequeno ruminante e colher uma amostra. Essa amostra vai ser analisada para verificar a qualidade do leite (teores de gordura e proteína) e o estado de saúde do animal. Poucos dias depois o agricultor recebe no telemóvel um alerta que pode consultar através da internet os resultados e relatórios.
Este serviço, que em Espanha e França se chama “controlo leiteiro”, permite ao agricultor escolher os animais mais produtivos e saudáveis, que vale a pena manter e dos quais deve criar a descendência. Com a partilha dos dados obtidos em todas todos os países, pode-se avaliar como está a evoluir o melhoramento da raça e como se comporta a descendência dos touros usados em inseminação artificial. Foi este trabalho de recolha e análise de dados, ao longo de décadas, que permitiu selecionar os animais mais produtivos, saudáveis e eficientes. Com a melhoria da eficiência hoje produz-se o mesmo leite com menos animais, menos consumo de água, energia, alimento e outros fatores de produção(…)»
Quero chamar a atenção para as duas vacas mais produtivas de então: a “Mansinha”, que tinha sido comprada ao meu tio Álvaro, um criador de referência que levava animais a concurso na década de 70, e a “Canadiana”, que tinha vindo de avião do Canadá, numa importação organizada pela AGROS para que os agricultores tivessem vacas mais produtivas. Estas vacas comiam na mesma manjedoura do que as outras, mas produziam mais porque tinham uma genética mais selecionada. É possível que também tivessem tido o parto mais recente, mas a genética mostrava a diferença.
Ao longo destes 40 anos, fomos sempre tentando escolher as filhas das melhores vacas e cruzando com os melhores touros do mundo (dentro de limites de preço), disponíveis através da inseminação artificial. E também fomos escolhendo as melhores sementes, procurando fazer melhor feno e melhores silagens. Fomos a reuniões e procuramos aprender a cuidar melhor dos animais. Fizemos obras procurando dar mais conforto.
Ao mesmo tempo, as empresas que fornecem os fatores de produção também fizeram esse trabalho, com particular destaque para os fabricantes de rações. Nas universidades, os investigadores fizeram experiências. Isto aconteceu na produção de leite como em todos os setores da pecuária e da agricultura.
Toda a gente sabe que se comprar para criar em casa um pinto “branco”, de “aviário, e lhe der a mesma farinha de milho, ele vai engordar mais rápido do que um pinto “vermelho”, que tem outro sabor. Ao longo dos anos, foram selecionados assim. As vacas mais leiteiras, os touros mais gordos para engordar, os touros mais bravos para a tourada, as galinhas mais poedeiras, os coelhos com mais filhos a crescer mais rápido e as batatas mais produtivas.
É natural que as pessoas não se tenham apercebido desta evolução, sobretudo as que estão fora do setor agrícola, que compram o leite empacotado ou o frango em bifinhos fatiados na cuvete do supermercado ou mesmo aqueles que cultivam o quintal para subsistência. É natural que digam que agora “é tudo feito à pressão” e, desconfiadas, pensem que este aumento de produção só é possível à custa de hormonas e antibióticos ilegais. Mas ao pensar, ou dizer isso, estão a fazer uma acusação grave sobre todas as pessoas que trabalham tanto na produção agrícola como no controlo, porque nunca houve tantas análises e tanto controlo.
É tudo gente séria na produção agrícola? Não é e nunca foi. Estou convencido que maioria dos agricultores é gente séria e cumpridora das regras e depois, como em todos os setores, há sempre alguém a furar o esquema. Provavelmente somos tão sérios como o resto da sociedade, como eram os nossos pais e como serão os nossos filhos. Nunca vi uma estatística de que as sucessivas gerações sejam mais ou menos honestas do que as anteriores. O que é evidente é que o saber acumulado ao longo de gerações, a melhoria da genética, do maneio e de tudo o resto explica como hoje é possível produzir mais e mais rápido.
(Escrito para o “Mundo Rural” de Maio / Junho 2023)
O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.