No próximo futuro iremos assistir a um movimento de compressão espaço-tempo-informação entre o mundo rural e o mundo urbano. Este movimento pode e deve ser acompanhado de uma instigação virtuosa através de múltiplos caminhos, por exemplo: a segmentação dos mercados, a diversificação de atividades, a diferenciação de produtos, a reapropriação dos recursos, a aculturação de novos atores, a formação de territórios-rede e atores-rede. Esta é uma grande oportunidade. Eis seis reflexões breves sobre o assunto.
1ª reflexão: uso do solo e sistema de poder
O uso do solo depende, em primeira linha, do sistema de poder que está instalado num determinado território. Sabemos todos que o sistema de poder não está visível nas estatísticas ou nos relatórios oficiais. O sistema de poder foi sublimado em leis, em decisões administrativas e em poderes institucionais legitimados. A coberto desta legitimidade, o sistema de poder usa a discricionariedade que lhe assiste para isentar, derrogar ou excecionar uma determinada disposição legal, sempre em nome do interesse geral ou do interesse público que o sistema de poder legitimamente representa. Se dúvidas houver, o silêncio ensurdecedor, a cumplicidade, a ocultação e uma comunicação de conveniência tratarão da ocorrência. Há, ainda, os tribunais para quem quiser arriscar.
2ª reflexão: a experiência do micro desenvolvimento
A experiência de micro desenvolvimento realizada pelas associações de desenvolvimento local e os municípios é, apenas, um pretexto para tentar colocar os problemas do desenvolvimento territorial na escala mais apropriada. Com efeito, as experiências de micro desenvolvimento são muito interessantes do ponto de vista da animação territorial mas só serão consequentes do ponto de vista socioeconómico se estiverem integradas numa hierarquia funcional de ordenamento e planeamento cujas âncoras principais sejam: uma cidade ou rede de cidades, um polo industrial ou de serviços ou um sistema produtivo local/sistema alimentar local, em suma, uma economia de aglomeração a montante ou a jusante que lhe alimente a rede arterial e capilar. Esta reflexão sobre as escalas mais apropriadas ao desenvolvimento territorial é, de resto, muito útil para perceber os erros de conceção e escala cometidos no âmbito dos QCA e QREN.
3ª reflexão: o estigma político da regionalização do continente
Um país com pouco mais de 200km de largura, excelentes rodovias, instituições de ensino espalhadas por todas as capitais de distrito, um país que tem uma grande variedade de microclimas, que teve acesso nos últimos 35 anos a meios financeiros em abundância, que tem a mesma cobertura autárquica há cerca de 150 anos, um país com uma larguíssima cobertura de associações empresariais e de associações de desenvolvimento local, como é que um país com todas estas características permitiu que o contributo do mundo rural para a riqueza nacional fosse tão baixo e tão desigual?
A resposta reside, em minha opinião, e desde o início (1989), num erro de conceção e escala na implementação dos instrumentos comunitários da política de coesão em Portugal. E qual foi esse erro?
A política de desenvolvimento rural (PDR) tem quatro grandes opções de política pública: o desenvolvimento agrário (uma opção sectorial ligada a interesses corporativos sectoriais), o desenvolvimento local (uma opção territorial ligada a interesses corporativos territoriais ligados às câmaras municipais e associações de desenvolvimento local), o desenvolvimento agroambiental (uma opção ambiental ligada a uma constelação de interesses muito heterogénea) e o desenvolvimento regional (uma opção regional ligada ao ordenamento e ao planeamento do desenvolvimento, mas suportada em interesses inorgânicos e difusos em redor das relações cidade-campo e das áreas de localização empresarial). E quais foram as opções políticas tomadas?
Devido ao estigma político que a regionalização vive desde 1998, a opção política desenvolvimento regional nunca foi utilizada perdendo-se uma oportunidade única de usar a escala de planeamento mais apropriada para fazer o desenvolvimento territorial num país de tão pequenas dimensões. Prevaleceu, assim, o corporativismo instalado e o localismo político-partidário ancorado nas câmaras municipais, associações de municípios, empresas públicas municipais e associações de desenvolvimento local, muitas delas simples extensões das câmaras municipais. Os empreendimentos perderam escala, falhou a regionalização do país e uma verdadeira política de coesão e competitividade.
O nível regional neste contexto não tem lobby próprio constituído devido justamente ao estigma político do 3º Estado (Estado nacional e Estado local) que o afeta desde o referendo de 1998 sobre a regionalização administrativa. Este exemplo mostra, mais uma vez, que o território não pode ser pensado em abstrato, pois ele é capturado pela estrutura de poderes que o determina em certa conjuntura histórica.
Este é o pecado original da política de desenvolvimento em Portugal, a saber, demasiado centralismo, por um lado, e demasiado localismo, por outro. Prisioneira dos lobbies instalados e do minifúndio institucional, nunca foi capaz de se libertar desses interesses sectoriais e territoriais, razão pela qual nunca houve um nível regional que pudesse funcionar como um centro de racionalidade de políticas públicas que possuísse pensamento próprio autorreferencial, musculo financeiro e escala operacional. Por causa deste erro de perspetiva, o desenvolvimento territorial não tem escala, pensamento próprio, musculo, não tem relação cidade-campo em dose suficiente e, portanto, economias de aglomeração suficientes para arrastar o conjunto das relações territoriais
4ª reflexão: a Grande Transição, novas diferenciações e segregações.
Por falta de uma efetiva escala regional que funcione como centro nervoso e placa giratória para a cidade e para o campo, na prática não há verdadeiramente nem cidade nem campo. O que temos é uma industrialização familiar, difusa e vulnerável, sem verdadeiras economias de aglomeração e, ao mesmo tempo, um rural tardio, anacrónico, disperso e difuso, com umas ilhas de modernização aqui e acolá.
Sem pensamento próprio sobre as relações cidade-campo, que seriam o eixo central de uma política de desenvolvimento regional onde se integraria naturalmente o desenvolvimento rural, apanhámos em cheio com os grandes movimentos de desestruturação/reestruturação do mundo agrícola e rural: a industrialização, o urbanismo, a grande distribuição alimentar, a turistificação, o conservacionismo, o higienismo alimentar, a biotecnologia, o recreacionismo e o lazer, o ecossistemismo das alterações climáticas, o culturalismo e o patrimonialismo, e os modos alternativos de produção e consumo
Estes movimentos estão hoje em plena operação, ocorrem e coabitam o mesmo espaço-território, pelo menos no mundo dito desenvolvido, e nele podemos assistir à fragmentação, à pulverização e à segregação das atividades inscritas no mundo rural, desde a estratificação social aos estilos de vida, dos mercados locais e da cultura tradicional aos modos de distribuição e consumo. Em cada movimento, há uma nova separação entre produção agrícola, produção agroindustrial, distribuição agroalimentar e modelos de consumo. Em cada movimento, as cadeias de valor alongam-se no território, tornam-se mais complexas, deslocalizam-se, adquirem vida própria, independentemente da base territorial de origem. Em cada movimento, há uma nova artificialização, há segregações contínuas de pessoas e atividades, há franjas de agricultores e pequenas indústrias que são irremediavelmente marginalizadas.
Estes movimentos sucessivos criam o caos no mundo rural, aumentam extraordinariamente a mobilidade cidade-campo e os movimentos de pendularidade, assim como a chegada dos chamados neorurais. Estamos, portanto, a viver uma Grande Transição, um longo e prolongado movimento paradigmático no mundo rural, se quisermos um longo movimento de fusão cidade-campo. No limite teremos um campo multidimensional feito de produção, conservação, recreio, quadro de vida e aculturação.
5ª reflexão: Duas tendências de fundo em rota de colisão
Neste movimento lento de fusão cidade-campo é possível discernir duas grandes tendências que podem entrar em rota de colisão. A 1ª tendência tem a ver com o acesso ao espaço rural, considerado espaço público, como espaço de conservação, espaço de recreio, espaço quadro de vida, espaço de aculturação. A 2ª tendência de fundo tem a ver com a privatização do espaço rural por poderosos processos de ruralização que estão em curso neste momento. O conflito é inevitável. Não podemos idealizar o mundo rural por mais assombrosas que sejam as nossas representações e encenações. Na retaguarda desses imaginários urbanos sobre o mundo rural correm as relações de poder. Por isso mesmo, não devemos confundir o frenesim dos novos atores do mundo rural (para já simples epifenómenos) com as relações de poder no interior do mundo rural português. Eis os principais processos de ruralização em curso:
– O rentismo imobiliário (a extração de mais-valias fundiárias);
– A florestação industrial de terras agrícolas (as grandes plantações industriais);
– A industrialização verde de fatores de produção (o greening produtivista);
– O radicalismo conservacionista (grandes propriedades naturais/naturalizadas);
– A residencialização do espaço agro-rural (os loteamentos em espaço rural);
– A energetização do espaço agro-rural (os parques energéticos exuberantes);
– A turistificação das amenidades rurais (os PIN, os parques bioambientais e outros);
– A cinegetização do espaço rural (as reservas de caça imponentes);
– O produtivismo das agriculturas especializadas (as explorações superintensivas);
– A terciarização comercial do espaço rural (a profusão de redes comerciais).
Tudo o que possamos dizer a propósito dos novos valores relativos ao ordenamento, ao uso múltiplo e à acessibilidade ao espaço agro rural, irá, provavelmente, conflituar com a tentativa de privatização de alguns processos de ruralização em curso. Os conflitos serão inevitáveis, mas deles, também, poderão emergir novos territórios.
Esta é, digamos, a grande novidade. Por uma espécie de efeito paradoxal, mesmo que não surjam novos territórios podem, não obstante, emergir novas territorialidades e, mesmo, algumas conversões à 2ª ruralidade, por via da responsabilidade social e ambiental, em primeira instância, e por via de uma nova sensibilidade ecológica e ecossistémica que coloca a biodiversidade, as infraestruturas ecológicas e os serviços de ecossistema em posição destacada que são, como sabemos, absolutamente imprescindíveis à segurança alimentar, aos sistemas produtivos locais e ao bem-estar dos cidadãos. Se formos capazes de estabelecer relações benignas e mutuamente vantajosas, promovidas e estimuladas pelas políticas públicas, entre alguns daqueles processos de ruralização mais conservadores e os empreendedores neorurais emergentes, poderemos, talvez, assistir ao desenvolvimento de efeitos virtuosos na transição para a 2ª ruralidade.
6ª reflexão: A emergente estratificação social da 2ª ruralidade
Perante neorurais rurbanos tão diferenciados, e em face de processos de ruralização tão distintos e socialmente tão virulentos, não será fácil extrair uma estratificação social característica. Assim sendo, assistiremos, inevitavelmente, a várias estratégias familiares, de emergência, umas, de fuga, outras, de projeto de vida, outras ainda, de projeto empresarial, finalmente. Sabemos, também, que se acentuarão as estratégias familiares intergeracionais, em ciclos de pluriatividade e plurirrendimento, expressos por novos movimentos pendulares entre a cidade e o campo, não apenas nos anéis suburbano e periurbano, mas, também, nos anéis mais afastados pertencentes ao rural remoto e profundo. Senão vejamos:
– Um primeiro estrato diz respeito à grande propriedade e às quintas novas que aparecem associadas aos empreendimentos complexo ou resort, ligados ao golfe, ao enoturismo, ao turismo cinegético e às diversas formas de turismo de saúde, portanto, mais turistificados, internacionalizados e financeirizados;
– Um segundo estrato diz respeito à classe empresarial da agricultura convencional ligada à agroindústria, à grande distribuição agroalimentar e ao agronegócio dos mercados internacionais que está em ajustamento permanente aos mercados globais (em processos de concentração e fusão) e às condições gerais de financiamento;
– Um terceiro estrato diz respeito à classe dos micro, pequenos e médios agricultores, proprietários e arrendatários, que vão desde a agricultura de subsistência, presente nos mercados locais de proximidade, até uma agricultura de subcontratação junto de cooperativas, intermediários e centrais de compra de grandes superfícies, quase sempre atravessando graves problemas de liquidez e solvência, uma boa parte no limbo entre economia formal e economia informal;
– Um quarto estrato tem a ver com uma parte da classe urbana que decidiu, num primeiro momento, patrimonializar a herança recebida onde tudo começou; estes neorurais aumentam o número de movimentos pendulares cidade-campo e interagem cada vez mais com a comunidade da aldeia, uns empresarializando aquele património com microprojectos empresariais, outros ensaiando sistemas alternativos de produção que acabam por intersectar e interagir com ele e são geralmente portadores de uma dose significativa de iniciativa e inovação.
Nota Final
Os seis aspetos mencionados nestas reflexões são apenas uma parte do problema da 2ª ruralidade. O declínio demográfico e a sucessão intergeracional, o grau de iliteracia digital e tecnológica, a baixa capitalização e o dano causado pelos acidentes climatéricos, a pressão fundiária das agências imobiliárias sobre os proprietários, a falta de mão-de-obra e a gestão dos fluxos migratórios, são outros fatores de relevo que não deixarão de afetar a transição para a 2ª ruralidade e que, no seu conjunto, porão à prova a capacidade de resiliência dos neorurais do próximo futuro. Nada está decidido à partida, esperemos apenas que a força da lei prevaleça sobre a lei da força.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve
Do rural tardio português até à 2ª ruralidade – O mix agro rural de fins múltiplos