[Fonte: Observador]
O que tem de fazer para limpar os seus terrenos? De quem são as responsabilidades? Que eficácia tem esta medida? Pode simplificar-se? Guia para perceber a lei da limpeza dos matos.
A ocorrência de grandes tragédias induz à tomada de grandes medidas. O Governo comprometeu-se a evitar tragédias semelhantes às que foram causadas pelos incêndios de junho e outubro de 2017 nos quais morreram mais de 100 pessoas. Custe o que custar. Custe a quem custar. E, no caso da gestão de combustíveis florestais, vai custar — e muito — aos proprietários dos terrenos, que se queixam dos valores envolvidos. Nalguns casos, em que a lei possa ser mal interpretada ou deixar dúvidas, pode correr-se o risco de serem feitos cortes prejudiciais para a conservação da natureza.
“Vamos fazer tudo o que é possível. Diria mesmo que, aqui e ali, vamos fazer o que possa parecer à partida impossível, para que finalmente se cumpra aquele objetivo [a lei de 2006]”, disse o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, numa entrevista à SIC Notícias. “Temos de fazer o máximo. Esse máximo é o mínimo que devemos àqueles que sofreram tanto no ano passado, para que nada de semelhante se volte a repetir.”
O problema é que não há garantias de que, mesmo que se cumpra escrupulosamente a lei, dentro dos prazos estipulados, se possam evitar situações como as do ano passado. As condições meteorológicas condicionaram a intensidade e dimensão dos incêndios verificados. E, segundo os especialistas em incêndios, continua a faltar uma aposta na vigilância, na deteção e combate precoce das ignições (os inícios dos incêndios).
“Depois de Pedrógão, nada pode ficar como dantes”, afirmou o ministro. Por isso o Governo alterou a lei de 2006 e reforçou a sensibilização e fiscalização. Acontece, contudo, que segundo especialistas em incêndios e florestas contactados pelo Observador, a lei tem algumas falhas técnicas e poderia ser melhorada, mesmo que parta de um bom princípio: proteger a vida das pessoas. Por isso, deixamos-lhe aqui algumas explicações em relação ao que é pedido e ao que podia ser melhorado.
Que alterações introduziu a legislação de 2018 em relação à de 2006?
O Decreto-Lei nº 10/2018, de 14 de fevereiro, é muito semelhante ao decreto-lei original —Decreto-Lei nº 124/2006, de 28 de junho — mas há quatro alterações que merecem destaque: o poder dado aos municípios, a especificação das medidas para pinheiros e eucaliptos, a mudança na avaliação dos matos a cortar e as coimas a aplicar.
O novo quadro jurídico permite que os municípios possam limpar os terrenos dos proprietários que não o façam, através da declaração de utilidade pública dos terrenos, de uma forma mais célere. E o agravamento do valor das coimas em 40% pretende “ajustar-se à realidade económica e à devida proporção da proteção do bem floresta”.
Em relação às medidas a tomar nas faixas de proteção, agora é requerido cinco metros limpos juntos à casa, quando na versão anterior da lei eram pedidos 10 metros. Em relação às árvores, os eucaliptos e os pinheiros passam a ter um requisito distinto: as copas têm de distar 10 metros umas das outras, quando para as restantes árvores é só de quatro metros. [Pode encontrar as restantes medidas impostas pela lei a partir da pergunta 5]
Mas uma das principais diferenças na avaliação da necessidade de gestão de combustível está relacionada com as ervas e arbustos. Se dantes se falava de volume de biomassa por área — uma medida mais realista, na opinião de Paulo Fernandes, engenheiro florestal e especialista em incêndios –, agora fala-se em altura das plantas — uma medida mais fácil de entender pelos proprietários.
Quais as principais dificuldades sentidas pelos proprietários e autarquias ?
Os proprietários têm até ao dia 15 de março para fazer a limpeza dos terrenos e, caso não o façam, as autarquias têm até 31 de maio para garantir que esses trabalhos são feitos. As queixas de uns e de outros são comuns: falta tempo, falta dinheiro, falta maquinaria e faltam recursos humanos.
“Àqueles que me dizem que há pouco tempo, costumo recordar que a legislação existe há 12 anos”, respondeu o primeiro-ministro António Costa no debate quinzenal no Parlamento, esta quarta-feira. “E quando os autarcas dizem que não têm meios recordo que o Orçamento de Estado aprovou uma linha de crédito de 50 milhões de euros para poder acorrer a esta necessidade.” Já o ministro da Administração Interna, na entrevista à SIC Notícias, referiu que esta era uma boa oportunidade de criação de empregos.
“Compreendo a preocupação e as medidas à luz do que aconteceu no ano passado, mas as medidas não têm qualquer tipo de sustentabilidade”, contrapõe João Gonçalves, presidente do Centro Pinus, uma associação que reúne agentes da fileira do pinho. “Não existem máquinas e pessoas suficientes para estes trabalhos porque não havia a necessidade. Como é que vão aparecer em duas semanas?”
O pouco tempo que falta para fazer cumprir a lei fez disparar os valores praticados pelos prestadores de serviços, nalguns casos para o dobro, como referiu o jornal i. O autarca de Viseu, Almeida Henriques, citado pelo mesmo jornal, referiu que, se dantes o preço médio de limpeza de cada hectare não ultrapassava os mil euros, agora chega aos 1.500 euros. Claro que o preço depende do trabalho feito, se se trata de roçar ervas ou de cortar silvas densas. Telmo Jesus, que trabalha no sector na zona de Coimbra, disse à Sábado que os custos para limpar um hectare podem ir de 270 aos 1.500 euros.
Mesmo que a gestão dos materiais combustíveis [ver pergunta 17: O que é a gestão de combustíveis?] existentes nos terrenos não chegue aos 200 euros por hectare por ano, como é referido em algumas situações, continuará mesmo assim a ser incomportável para alguns proprietários. “Não é possível pagar a gestão de combustíveis, porque não há produção que pague a gestão dos terrenos”, afirma Henrique Pereira dos Santos, arquiteto paisagista. O rendimento médio-alto de uma produção florestal que não esteja sujeita a esta legislação poderá rondar os dois mil a 2.500 euros, ao fim de 10 anos, mas o rendimento de um proprietário que tenha de respeitar a distância mínima entre copas será, naturalmente, muito menor, uma vez que no mesmo terreno terão de existir menos árvores.
“As consequências mais directas são o aumento obrigatório de custos com a limpeza, com a consequente desvalorização dos terrenos”, disse ao Observador o Núcleo Fundador da Zona de Intervenção Florestal (ZIF) da Ribeira do Sinhel. “Se o rendimento já é reduzido, aumentando os custos de gestão o que sobra é negativo, ou seja, os terrenos visados dão prejuízo de forma sistemática.”
Quando isso acontece, corre-se o risco de abandono da exploração florestal e do interior, deixando os terrenos sem qualquer intervenção.
No ano passado, não só melhorámos as condições de formação das ZIF, como criámos as entidades de gestão florestal que não implicam a transferência de propriedade, mas permitem o arrendamento das pequenas propriedades de forma a que elas possam ser exploradas a uma escala maior”, disse António Costa no debate quinzenal no Parlamento.
Se o Estado quer considerar a limpeza dos terrenos como “proteção do bem comum”, então tem de ser o Estado a pagar, defende, por seu turno, Henrique Pereira dos Santos.
Para os proprietários existe ainda uma preocupação acrescida: “A certeza de que antes de chegar o verão teremos de realizar nova limpeza, pois a vegetação terá o seu maior período de desenvolvimento durante a primavera, de abril a junho”, acrescentou o Núcleo Fundador da ZIF que representa os proprietários da freguesia de Alvares, no concelho de Góis.
Os engenheiros florestais contactados pelo Observador colocaram assim em causa que os prazos estabelecidos no decreto-lei sejam os melhores para garantir que não há acumulação de combustíveis no verão, pois os matos terão toda a primavera para voltarem a crescer.
Que problemas tem esta lei?
Esta legislação tem um erro de base, defende Henrique Pereira dos Santos: atribuir aos proprietários responsabilidade por trabalhos que não podem pagar. “A Galiza tem uma lei semelhante que também não consegue cumprir”, acrescentou.
“A lei não funciona porque é irrealista, especialmente tratando-se de uma população idosa”, concorda Paulo Fernandes. “Os velhotes isolados são os que mais precisam e os que menos possibilidade têm de o fazer, porque já não têm vigor físico e não têm dinheiro.”
As medidas propostas são mais exigentes do que em qualquer outro país que tenha fogos frequentes como Portugal, disse Paulo Fernandes, que analisou a legislação da América do Norte, Europa e Austrália. Faixas de gestão de combustível tão extensas têm custos elevados para os proprietários e requerem muito mais tempo para serem tratadas. Para além disso, a “fundamentação técnica e científica é insuficiente”, defende o engenheiro florestal João Gonçalves.
Paulo Fernandes deu mais um exemplo: o maior espaçamento entre as copas até pode ter um efeito contraproducente. Com copas mais espaçadas entra mais vento e mais luminosidade, que faz com que os matos cresçam mais no inverno e sequem mais no verão. Por um lado, os ventos fazem com que os incêndios avancem mais rapidamente; por outro, o aumento da luz que chega ao solo faz com que arbustos, silvas e ervas cresçam mais depressa, o que obriga a que o proprietário tenha de os cortar com mais frequência.
O ambientalista Paulo Lucas, mesmo reconhecendo que uma legislação não pode prever todas as situações, considera que a lei não pode ser aplicada cegamente em todo o país. As situações têm de ser analisadas caso a caso e as decisões têm de ser tomadas com bom senso. Até porque nem todas as zonas apresentam o mesmo risco de incêndio e o poder local e nacional devia estar mais focado onde o risco é maior em vez de tentar atuar sobre todo o país num curto espaço de tempo.
“Durante pelo menos 10 anos não se fez nada e, agora, depois de duas grandes tragédias, tem de se fazer tudo rapidamente”, acusa o membro da Zero. “Nem sequer faz sentido fazer tudo.”
Que alterações podiam ser feitas para tornar a lei mais fácil de cumprir?
Estabelecer prioridades
Há um princípio básico que é começar por fazer aquilo que é possível fazer. “Quando não há recursos para se fazer tudo, começa-se por gerir os estratos mais baixos, como o estrato arbustivo e a manta morta”, explica Paulo Fernandes. “Depois cortam-se os ramos. E só quando temos muitos recursos, desbastamos as árvores.”
A Associação Nacional de Municípios Portugueses defende que se devem “estabelecer zonas de intervenção prioritária, em função dos dados objetivos que se conhecem, para salvaguarda de pessoas e bens”. O encargo não pode ser apenas das câmaras municipais e o esforço tem de ser articulado com todos os intervenientes, disse à Lusa o presidente da associação, Manuel Machado.
Embora considere que a gestão de combustíveis deve ser feita em todos os espaços rurais e florestais, de todo o país, e que todos esses locais deve ser fiscalizados, o Governo estabeleceu quais são as zonas prioritárias de fiscalização. Estas zonas estão definidas no Despacho n.º 1913/2018, de 12 de fevereiro, podendo a lista completa das freguesias ser consultada aqui ou no mapa que se reproduz em baixo.
Diminuir as faixas de gestão de combustível
Como primeira medida de alteração da presente legislação, Paulo Fernandes propôs a diminuição das faixas de gestão de combustível e do que se faz dentro delas. Portugal exige uma faixa de 50 metros em torno das casas, mas o mais comum noutros países, incluindo os Estados Unidos, é que esta medida seja de 30 metros. No fundo, é a diferença entre limpar cerca de oito mil metros quadrados ou apenas cerca de três mil metros quadrados.
Mais: o excesso de zelo, diz Paulo Fernandes, faz com que seja estabelecido que as copas dos pinheiros e eucaliptos devem distar 10 metros entre si, quando nos outros países é menos. A nível mundial são cerca de três ou quatro metros, referiu o engenheiro florestal. Pode chegar aos seis metros nos Estados Unidos e Canadá e aos sete metros na Galiza. Paulo Fernandes não encontrou outro país onde se chegue aos 10 metros.
Depois, acrescentou o professor, os outros países não costumam fazer a distinção entre casas isoladas e aglomerados populacionais e aplicam a mesma medida da faixa a todas as situações. Portugal poderia ter proposto uma faixa de 50 ou 60 metros à volta dos aglomerados, sugeriu. “Pede-se muito esforço com resultados duvidosos.” O que os estudos mostram é que, a partir de cerca de 3o metros, não se acrescenta segurança às pessoas e bens — mas acrescenta-se nos custos. Em Pedrógão Grande, Paulo Fernandes viu casas ardidas cujas árvores à volta estavam intactas, pelo que não é uma faixa de 100 metros (ou mesmo uma faixa maior) que vai prevenir as projeções de material incandescente pelo ar.
Alternativas à gestão de combustíveis
Menos área de gestão de combustível resulta em menos custos, menos impactos paisagísticos, menos casas expostas às intempéries e menor exposição do solo às espécies infestantes. Mesmo os custos poderiam ser pensados de outra forma. Primeiro, o Estado podia incentivar serviços de ecossistema que fazem a gestão dos combustíveis, como a atividade dos resineiros e o pastoreio. Depois, as autarquias podiam equipar-se com a maquinaria e pessoal necessário e providenciar o serviço aos proprietários, ou sem custos (porque a mão de obra dos funcionários já está paga) ou muito mais barato do que os preços praticados (só para cobrir os custos de desgaste das máquinas), propõe Paulo Fernandes.
Além de criticarem alguns aspetos técnicos da legislação, os especialistas em florestas e incêndios continuam a reforçar o que está em falta: uma maior aposta no sistema de vigilância, para diminuirmos o número de ignições e para que estas possam ser extinguidas rapidamente.
Não obrigatoriedade das medidas
Outro ponto abordado é a imposição, a obrigatoriedade. “Mesmo em países ricos, como nos países da América do Norte e na Austrália, não há qualquer obrigatoriedade, só recomendações técnicas”, disse Paulo Fernandes. Mas há outros locais, onde as consequências de quem não cumpre as recomendações são muito mais graves do que uma coima: na Califórnia, os proprietários que não limparam os terrenos não recebem proteção dos bombeiros em caso de incêndio.Henrique Pereira dos Santos defendeu que esta medida também deveria ser implementada em Portugal.
Incentivos à fixação no interior
Para o Núcleo Fundador da Ribeira do Sinhel é fundamental uma alteração estruturante da zona do Pinhal Interior, mas isso poderá levar 15 a 20 anos. “O interior, e as zonas florestais em particular, necessitam de incentivos urgentes à fixação e atracção de população e de discriminação positiva”, como taxas baixas de IRC para empresas com sede nesses territórios ou vantagens para os residentes no que respeita a taxas de IRS, serviços médicos com médico e enfermeiro residente, escolas em bom funcionamento com professores residentes, entre outras coisas. “Mais, as despesas que os proprietários assumem ou são obrigados a assumir com a implementação e manutenção das faixas de gestão de combustível deveriam ser elegíveis em sede de IRS/IRC.”
O que têm de fazer os proprietários?
“São obrigados a fazer a gestão de combustíveis todos os proprietários, arrendatários, usufrutuários e entidades que detenham terrenos inseridos nas áreas referidas anteriormente, mesmo que não sejam os proprietários das edificações”, esclarece o Governo no site da campanha de limpeza do mato. Para facilitar, chamaremos proprietários a todos estes agentes. “São igualmente obrigados a fazer a gestão de combustível as entidades responsáveis pelas redes rodoviária, ferroviária, elétrica, entre outras, bem como as entidades gestoras de áreas industriais, parques de campismo, centros logísticos e outras infraestruturas.”