Os vinhos de Trás-os-Montes, eruditos pelo seu passado bimilenário, conjugam-se e declinam-se em diversos modos, tempos, pessoas, géneros e números. Têm um fundo comum, étimo fundacional, raiz ancestral, segredo de carácter: a sua honestidade. Nas Arribas do Douro, em Montalegre, em Sobreiró, em Arcossó, em Sonim, no Lombo ou Jou ou Uva, no Planalto Mirandês ou de Carrazeda, em Rebordelo ou Sendim ou Valpaços, no Vidago ou em Anelhe, em Vale de Salgueiro ou noutros vales, invocando os Távoras de Mirandela e Mogadouro, fazendo sentar à mesa o Palmeirim de Inglaterra ou nela pousando garrafas de Santa Valha, se pode estar, mesmo sem convite (entre quem é!) numa animada prova com produtores em que tudo se discute menos o seu carácter e genuinidade chãos. Porque todos os sabem.
Tal como todos sabem ter chegado o momento: desconcertados que estão os nove meses de Inverno e três de Inferno, conhecidos como nunca os terroirs e climats dos diferentes microambientes de cada produtor, o comportamento das castas e a utilização judiciosa das leveduras indígenas e exóticas, está-se no limiar da grande fase, em que o interesse pelos vinhos produzidos na mais desconhecida região de Portugal despertou e valorizar-se-ão sem precedentes. Assim como, vir para Trás-os-Montes produzir, corresponderá à adaptação de muitas marcas aos tumultuosos solavancos do clima.
Normalmente, os vinhos são tecnológicos, com produção de uvas e elaboração científica em que intervêm terroir, climat, leveduras e savoir faire. Normalmente. Porque em Trás-os-Montes há, para além disso, que contar com a mitologia. Não só a dos trasgos na vinha e na adega com tropelias, mas aquela mitologia de que são feitos os sonhos e as memórias, a vontade visionária e o respeito pelo legado. Em que intervém, indissociável e finamente molecular, um herdado amor pela Arte.
De tudo isto há um perdurável e verdadeiro paradigma: os Vinhos de Valle Pradinhos. Tintos, brancos e rosés, ainda uma bagaceira velha que é uma poção mágica capaz de despertar todo o tipo de musas, já há mais de um século que se começaram a derramar neste recanto bucólico e inspirador, descoberto e adquirido por Manoel Pinto de Azevedo numa das suas deambulações à caça, no início do século XX, ainda antes da Primeira Grande Guerra. É o DO e IG que mais perto de nossa casa tem as vinhas, facilmente visíveis para quem viaje na A4 (a mais bonita autoestrada de Portugal), onde crescem as Riesling, Gewurstraminner, Malvasia Fina, Pinot Noir, Cabernet Sauvignon, Touriga de Portugal, digo, Touriga Nacional, Tinta Amarela, Tinta Roriz, todas parceladas e vindimadas com cuidado, segundo a sua evolução característica, objecto duma criteriosa gestão do calendário, dos tempos de vindima e da sequência de controlo de frio até às demais operações. Um campo experimental, existente já há dezenas de anos, esteve na origem de algumas das decisões então tomadas para a plantação dos hectares mais modernos do Casal de Valle Pradinhos, cuja ciência de Bordéus foi infundida por João Nicolau de Almeida e cuja ciência actual, este ano na sua vigésima quinta vindima, tem tido a vara de condão excepcional de Rui Cunha. Se dizemos vara de condão, é por uma razão de ser não só mitológica: é que há segredos só entendíveis por iniciados com poder para tal, tal como o que está contido nas, infelizmente poucas, garrafas que este ano ostentarão, pela terceira vez na história (as outras duas foram em 2010 e em 2017), o rótulo The Lost Corner, um dos mais raros e bem conseguidos vinhos de sempre. De fórmula secreta.
Nada secreta, mas nem por isso menos considerável, a de outro lote-novidade a ser lançado também neste Outono: um Valle Pradinhos Tinto Reserva, mas monocasta, Touriga Nacional. O fundo científico da operação de vinha e adega tem a marca desses dois protagonistas, mas só foi possível porque antes deles teve luz e orientação dadas pela constelação Pinto de Azevedo, que a si fez agregar muitos outros que ao longo do tempo foram operando as transformações com efeitos e matizes, os matizes das obras de Arte. Que não é palavra usada à toa: muitos escritores e artistas tiveram acolhimento nesta constelação nas páginas d’ O Primeiro de Janeiro, puderam viajar a este interior, então tão longínquo!, e ficar como convidados na extraordinária Estalagem do Caçador, vir a Vale Pradinhos viver na obra que se foi fazendo, comungando nas vidas que se foram cumprindo. Ferreira de Castro (que chamava de D.Maria I de Trás-os-Montes e III de Portugal a D. Maria Pinto de Azevedo!), Agustina Bessa-Luís, Jorge Barradas, Graça Morais (que teve por padrinhos de casamento a D. Maria e Júlio Resende, outro dos habitués…), … todos beberam do Vinho de Vale Pradinhos, avant la lettre, mesmo sem a ciência enológica de hoje.
Assim, não é por acaso que numa das paredes do escritório do Casal de Vale Pradinhos, sob o retrato venerando de Manoel Pinto de Azevedo, está uma pequena, colorida e preciosa aguarela com a sua filha Maria, colocando manualmente rótulos em garrafas, pincel e legenda do genial Guilherme Camarinha: “Porto 20 de Out. de 1968 … como eu estou a ver! – o que se diz uma actividade! – Pudesse eu e aí ia já – a segurar o boião”. Hoje em dia, os rótulos trazem a assinatura da neta de Maria Pinto de Azevedo, a de Maria Antónia Pinto de Azevedo Mascarenhas, design significativo pela mesmíssima característica dos vinhos de Trás-os-Montes: todos os lotes são por si provados e aprovados, para merecerem, com justo orgulho, o seu atestado de honestidade! Santé!
Manuel Cardoso
Consultor e escritor
Artigo publicado originalmente em Eggas.
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