Uma das questões mais interessantes e intrigantes da transição digital é a de saber como responde a inteligência coletiva dos principais incumbentes do território e como essa reação se repercute sobre o ordenamento e a ocupação do território à medida que o tempo-máquina, a inteligência artificial, a realidade virtual e as tecnologias de interface cerebral usadas no ambiente imersivo do metaverso forem os dispositivos técnicos e tecnológicos mais utilizados. Dito de outra forma, trata-se de saber como vai comportar-se a nossa geografia sentimental e a inteligência emocional que a orienta, face aos procedimentos mais abstratos e tecnológicos das outras duas inteligências, a racional e a artificial. Ou seja, vamos digitalizar o território e monitorizá-lo à distância numa lógica maioritariamente ex situ ou vamos territorializar o digital com a criação de infraestruturas e equipamentos que atraiam os jovens empresários e os talentos criativos para as nossas redes de vilas e cidades de acordo com uma abordagem maioritariamente in situ que faça da ocupação equilibrada e harmoniosa do território uma espécie de imperativo categórico?
Uma transição digital muito atribulada
Não é fácil uma resposta clara à pergunta antes formulada. A década 2020-2030, no âmbito da União Europeia, é um período excecional, por uma razão muito singular, a saber, temos recursos volumosos à nossa disposição, mas, igualmente, muita incerteza associada. Esperemos que prevaleça o bom senso, mas o risco de desperdício é, deveras, muito elevado. Lembremos as grandes transições que atravessam esta década – climática e energética, ecológica e alimentar, digital e tecnológica, demográfica e migratória, securitária e geopolítica, geoeconómica e laboral – para dizer que, muito provavelmente, assistiremos a mudanças paradigmáticas de longo alcance, com um risco de colisão elevado, e as seguintes propriedades emergentes: ciclos de duração muito variável para cada transição, muitos efeitos assimétricos sobre os territórios, muitos danos colaterais e uma gestão do risco altamente atribulada, custos de contexto cuja severidade ainda mal imaginamos, uma governação multiníveis extraordinariamente exigente e politicamente muito delicada, um mercado laboral em permanente agitação e uma iliteracia digital que cria exclusão social entre os mais idosos, uma guerra informática e cibernética que não poupa ninguém, um nervosismo crescente nos regimes políticos democráticos e liberais assoberbados com muitas tarefas pesadas e exigentes que o populismo aproveita para capitalizar em seu favor. Uma transição muito atribulada, portanto, durante toda a década.
A latitude dos assuntos objeto da transição digital
A transição digital acontece no contexto que acabámos de descrever, mas a latitude das áreas envolvidas e os efeitos cruzados das suas inúmeras transformações são, só por si, uma tarefa de coordenação muito complexa. Digamos que é mais fácil definir as condições de formulação da transição digital, como se observa, por exemplo, no plano de ação digital do governo ou nos termos do programa de recuperação e resiliência (PRR), do que materializar com efetividade as condições de realização dos mesmos programas. As principais áreas em questão são as seguintes: a infraestrutura digital de cobertura do território (e as suas eventuais assimetrias), o grau de literacia digital da população (uma maior diferenciação e uma menor exclusão), o grau de transformação digital das PME (e os seus problemas de recapitalização), os novos modelos empresariais de negócio digital (e os seus problemas de incubação e consolidação), a gestão do risco digital (e os seus problemas de regulamentação e regulação), as várias métricas de sustentabilidade fraca e forte (e os seus problemas de implementação efetiva), a digitalização administrativa (e a redução efetiva dos custos de contexto), a gestão da interface cidade-campo (e a redução efetiva dos custos energéticos, hídricos e alimentares), a qualidade do espaço público urbano (e a aplicação eficiente dos sistemas inteligentes de mobilidade urbana, arquitetura e construção), a adição digital e a saúde mental (e a qualidade do desempenho profissional, familiar e social).
O elenco de todas estas áreas objeto da transição digital dá-nos uma primeira indicação relativa à projeção e aos impactos dos vários investimentos em infraestruturas e equipamentos sobre a estruturação e organização do território.
O impacto da transição digital sobre a estruturação do território
Sabemos que num mercado pequeno como o nosso o custo de oportunidade do investimento pode ser mais elevado, mas, neste caso, os investimentos em matéria de infraestruturação digital e tecnológica do território podem reduzir substancialmente esse custo de oportunidade. Vejamos, muito sinteticamente, como é que a transição digital se projeta sobre a estruturação do território e os seus modos de organização e inteligência territorial:
– A digitalização dos serviços públicos, da loja do cidadão in situ à loja do cidadão ex situ no nosso smartphone,
– A smartificação das cidades, as diferentes graduações e patamares da cidade inteligente e criativa,
– A polarização da transformação digital, os polos de inovação digital, os hubs tecnológicos, a fábrica dos unicórnios (em Lisboa),
– A plataformização colaborativa das redes descentralizadas e distribuídas, uma nova vida para as associações empresariais em matéria de cooperação, extensão e formação empresarial,
– A clusterização de uma área de atividade industrial, por exemplo, o que decorre das agendas mobilizadoras e dos consórcios empresariais do PRR,
– A territorialização de um ecossistema digital, como projeto estratégico estruturante no âmbito de uma CIM ou região-cidade,
– A economia das interligações e a conectividade dos geossistemas de base territorial, por exemplo, no âmbito do programa operacional regional (POR): o desenho do sistema-paisagem e o mosaico paisagístico, o mix energético, a economia circular, as redes de cooperação empresarial, a reorganização de fileiras e cadeias de valor locais e regionais,
– A transformação da arquitetura do espaço público urbano e das relações cidade-campo, por exemplo, em matéria de sistema inteligente de mobilidade urbana e de gestão de infraestruturas e corredores verdes,
– O ordenamento do território e a gestão da paisagem global, por exemplo, nas zonas de intervenção florestal, nas áreas integradas de gestão paisagística, nos condomínios de aldeia, na silvicultura preventiva e em tudo o que faça uso da georreferenciação e sistemas de informação geográfica (SIG),
– Uma reforma substancial do ensino e da educação, que considere o património e a paisagem, as ciências e as tecnologias, as artes e a cultura, os vetores essenciais de uma política reformista para a escola em geral e a universidade em particular.
Os incumbentes principais da inteligência coletiva territorial
Aqui chegados, só teremos uma ocupação equilibrada e harmoniosa do território se tivermos intérpretes genuínos para a inteligência coletiva territorial e atores-rede capacitados para administrarem as várias plataformas colaborativas e os seus dispositivos tecnológicos e digitais mais diferenciados. Eis alguns desses incumbentes principais que precisam urgentemente de ver a luz do dia:
– As uniões de freguesias e as redes comunitárias de serviços ambulatórios junto dos grupos de população mais vulneráveis; a tecnologia digital pode favorecer esta mobilidade e proximidade,
– As zonas de intervenção florestal (ZIF), as áreas integradas de gestão da paisagem (AIGP), os condomínios de aldeia (CA), precisam de estar no terreno para realizar com eficácia a gestão do risco de incêndio, o ordenamento e a gestão florestal,
– As áreas de paisagem protegida, os parques naturais, os geoparques, as zonas termais, precisam de estar no terreno através de clubes de produtores e associações de defesa do património para realizar o ordenamento e a gestão efetiva do património natural e a sua visitação turística ordenada,
– Os centros de investigação, os laboratórios colaborativos e as associações de desenvolvimento local, precisam de estar no terreno em plataformas colaborativas com o apoio de jovens estagiários de investigação e estudantes de pós-graduação em projetos de investigação e desenvolvimento e com pontos de apoio em projetos empresariais,
– As zonas industriais, os parques empresariais e os núcleos empresariais, precisam de estar no terreno para realizar a gestão coletiva de bens e serviços comuns, em especial, na gestão de resíduos e tudo o que diz respeito aos projetos de economia circular,
– As associações empresariais, as escolas profissionais, os institutos politécnicos e as universidades, precisam de constituir plataformas colaborativas de cooperação e extensão empresarial de apoio ao reagrupamento e recapitalização de PME e explorações agrícolas,
– Os consórcios empresariais formados no âmbito das agendas mobilizadoras do PRR, compostos por várias entidades públicas e privadas, são um posto de observação privilegiado para acompanhar a realização efetiva dos programas contidos no PRR, sobretudo os de índole industrial,
– Os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) e as euro-cidades, precisam de estar no terreno, formar plataformas colaborativas e realizar efetivamente a cooperação transfronteiriça que está inscrita nos seus programas,
– As redes de vilas e cidades, as comunidades intermunicipais (CIM) e as regiões-cidade, precisam de estar no terreno e praticar formulas mais ousadas de federalismo intermunicipal, utilizando, para o efeito, as plataformas digitais das cidades e regiões inteligentes e criativas.
Notas Finais
Como se observa, sem todos estes incumbentes principais não teremos, muito provavelmente, inteligência coletiva territorial capaz de realizar efetivamente as infraestruturas, os equipamentos, as plataformas, as comunidades inteligentes, os atores-rede e as equipas que são imprescindíveis à transição digital e nem sequer falamos da geografia sentimental, da inteligência emocional e da criatividade dos territórios que devem animar todo este sistema operativo. Ou seja, se não construirmos com zelo e competência as nossas redes e plataformas made in, à medida das nossas necessidades, recursos e objetivos, vamos ficar nas mãos do negócio digital operado pelos intermediários dos grandes gigantes tecnológicos que nos tratam como meros utilizadores e consumidores finais dos seus produtos e serviços e sempre à mercê da última moda. Fica o aviso, o nosso problema maior não é de instrumentos ou tecnologia, é de compromisso e solidariedade com a economia do bem comum.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve
Do rural tardio português até à 2ª ruralidade – O mix agro rural de fins múltiplos