Mais uma semana e mais uma reflexão, talvez seja (mais) um “grito de alerta”, sobre a implementação da EUDR, a legislação relativa às cadeias de abastecimento livres de desflorestação, cujos impactos e consequências aqui temos trazido ao espaço público. Infelizmente, não só não tem tido eco na comunicação social, como não temos visto outras posições públicas sobre eventuais riscos de disrupção nas cadeias de abastecimento.
Tal não significa que os diferentes setores abrangidos – soja, bovinos, borracha, café, cacau, palma e madeira – não estejam igualmente preocupados e partilhem das nossas angústias, como temos vindo a confirmar nos sucessivos contactos com as respetivas organizações representativas. Mas não pretendemos ser uma “voz isolada” a nível nacional, quando em Bruxelas existe uma articulação muito estreita, com posições comuns, e uma coligação da cadeia de abastecimento.
Não está em causa apenas a alimentação animal e, por arrastamento, os produtos de origem animal, mas a alimentação humana e a indústria da madeira, automóvel, e, o que mais nos assusta, a transparência e a confiança dos cidadãos. Não podemos esquecer que, no final da cadeia alimentar, é o retalho que tem de “dar a cara” perante os consumidores, e os diferentes setores face às entidades oficiais de controlo (ICNF), que, neste momento, nem têm meios, nem respostas para dar às empresas, porque também delas necessitam. E Bruxelas, a Comissão Europeia, mais concretamente, a DG ENVI, não as assume… porque ainda não está em condições de as fornecer. Já para não falar dos países exportadores, que admitem não conseguir cumprir as exigências da União Europeia.
Não, não é ficção, é realidade, e pode ser o caos.
Alguém compreende como e porque chegámos a este ponto?
A história conta-se (e relembra-se) rapidamente: reconhecendo (e bem) que temos de lutar contra a desflorestação e cumprir “a nossa parte”, pese embora sejamos responsáveis por apenas 10% do problema, a Comissão Europeia, em articulação com o Conselho e o Parlamento Europeu, criou a legislação sobre as cadeias de abastecimento livres de desflorestação. Face aos atrasos na sua implementação, tendo em conta as exigências, desde logo a devida diligência, geolocalização, rastreabilidade, zonas de risco, sistemas de informação, FAQ e orientações interpretativas… e sem que tenham sido auscultados os representantes de países terceiros mais diretamente envolvidos, rapidamente se apercebeu de que poderíamos estar perante um “rolo compressor”, uma enorme incerteza jurídica, qual bomba-relógio à espera de detonação até final do ano.
Depois de várias insistências no quadro da DG AGRI e de esta se ter desvinculado inicialmente do processo, alegando que era da competência da DG ENVI (Ambiente), o Comissário da Agricultura percebeu o que estava em causa e ele próprio endereçou uma carta à Presidente da Comissão Europeia, partilhando as preocupações setoriais e de 22 Estados-membros, no sentido de adiar a entrada em vigor da EUDR (prevista para janeiro de 2025), servindo esse período como de transição, de testes e de clarificação.
Uma mera questão de bom senso, apesar das pressões das ONG, que – não o temos visto – parecem não se preocupar com os responsáveis por 90% do problema: o resto do mundo. Não estamos a negar ou a desvalorizar o tema. Aqui o reiteramos: não está em causa o compromisso com o combate à desflorestação que a todos respeita.
Entretanto, a Presidente da Comissão esperou pelos resultados das eleições europeias, ainda não respondeu à carta, nem aos sucessivos apelos de países e organizações, e tudo indica que não o irá fazer antes do próximo dia 17 de julho, quando se irá apresentar perante a nova configuração do Parlamento Europeu. E, tal como a volatilidade dos preços, temos igualmente uma volatilidade política, porque a reeleição para mais um Mandato ainda não é adquirida, nem é de excluir que possa necessitar dos Verdes para liderar os destinos da Comissão Europeia por mais cinco anos.
Por outro lado, relembre-se que a 27 de junho, a Cimeira aprovou a versão final da Agenda Estratégica da União Europeia (UE), ainda sob a presidência belga do Conselho da UE. Nesse documento, os Chefes de Estado endossaram a referência para “promover um setor agrícola competitivo, sustentável e resiliente que continue a garantir a segurança alimentar”. Trata-se de uma mudança significativa da nova agenda estratégica na definição de prioridades em comparação com o anterior Green Deal, embora inclua uma referência direta a “fortalecer a nossa competitividade e tornar-se o primeiro continente neutro em termos climáticos” e adicione “resiliência hídrica” à lista de tópicos sobre alterações climáticas.
Entretanto, a Presidência húngara publicou o seu programa de trabalho, incluindo um capítulo sobre a Política Agrícola, orientada para os agricultores, sublinhando que “é essencial ver a agricultura não como uma causa das alterações climáticas, mas como parte da solução, envolvendo os agricultores na adoção de práticas de produção mais sustentáveis, garantindo, simultaneamente, a segurança alimentar. Por conseguinte, as garantias a longo prazo da soberania e segurança alimentar devem fazer parte da autonomia estratégica da UE“.
Onde existe a coerência, na Agenda Estratégica ou no Programa da presidência, quando o que está a acontecer com a EUDR compromete a soberania e a segurança alimentar?
A Hungria, tal como muitos outros países, é um dos que ainda não definiram qual vai ser a entidade responsável pela implementação da EUDR e, em muitos Estados-membros, contrariamente ao que sucede em Portugal, não existe entendimento entre agricultura e ambiente.
Porque continuamos à procura de soluções, continuam a decorrer reuniões com os serviços da Comissão, que se remetem para uma decisão política… nas mãos da Presidente von der Leyen.
A coligação da cadeia de abastecimento deverá avançar agora para uma carta dirigida aos Chefes de Estado e de Governo para que, eventualmente, o Conselho possa “forçar” a Comissão a tomar uma posição. O próximo dia 15 de julho, em mais um Conselho Agrícola, pode ser igualmente relevante.
Para já, tal como aconteceu com a pandemia, consideramos urgente que a Comissão Europeia contemple um plano de contingência EUDR para ajudar a mitigar a perturbação esperada das cadeias de abastecimento essenciais.
Perante todas as evidências, só nos resta perguntar: é teimosia ou irresponsabilidade?
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA
Tempestades que se adivinham – Jaime Piçarra – Notas da semana