Miguel Freitas defende a gestão ativa como um fator crítico para o sucesso da floresta. Leia a entrevista, na íntegra, que deu à “Produtores Florestais”.
Miguel Freitas, ex-titular da pasta das Florestas e Desenvolvimento Rural, acredita que a floresta nacional tem uma oportunidade “para iniciar um ciclo novo, agora que tomamos consciência coletiva do seu estado de necessidade e de como a existência de uma gestão ativa é um fator crítico de sucesso”.
Apesar de algum ceticismo sobre a nova Estratégia Europeia para a Floresta, uma vez que “persiste um défice crónico e uma incompreensão sobre as necessidades de apoio”, acredita que o poder político está mais desperto para a floresta. “Portugal é o país com a maior produtividade primária líquida entre os ecossistemas europeus, e não podemos desaproveitar esta preciosa vantagem”, alerta, destacando a importância de todas as fileiras florestais na economia nacional.
Licenciado em Engenharia Agrícola, Miguel Freitas foi deputado, por Faro, em três legislaturas, e secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural entre 2017 e 2019. Atualmente é docente na Universidade do Algarve.
A Comissão Europeia está a preparar uma nova Estratégia para as Florestas. Que pressupostos estão em causa para o próximo ciclo florestal e que reflexo poderão ter no nosso país?
No quadro do Pacto Ecológico, a nova Estratégia Europeia para a Floresta vem reforçar uma visão holística dos espaços e dos ecossistemas florestais, associada à transição climática e à Estratégia Europeia para Biodiversidade e a Bioeconomia, alargando objetivos para novas políticas industriais, ambientais e energéticas, mas sem reconhecer estatuto próprio à Política Florestal. Persiste, assim, um défice crónico e uma incompreensão sobre as necessidades muito diversificadas de apoio para as florestas. Do ponto de vista operacional, a Comissão Europeia pretende influenciar os programas nacionais, nomeadamente ao nível do Plano Estratégico da PAC, mas a margem de manobra é curta face aos múltiplos objetivos que impendem sobre este instrumento e a força negocial da dimensão agrícola. O Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), apesar de transitório, é realmente a única novidade, podendo constituir uma oportunidade de reforço do investimento florestal.
“A introdução de inteligência e coordenação da informação florestal, com a criação de um Sistema de Informação Florestal, torna-se um imperativo neste novo ciclo, a par da geração de mais conhecimento e mais inovação.”
Os fundos previstos para o setor florestal vão ser suficientes para a reforma que, permanentemente, se reclama para a floresta?
O PRR é um balão de oxigénio extra que poderá ser importante para um setor florestal a necessitar de sair do estado de incerteza que a pandemia agravou. No entanto, mais do que esperar que o dinheiro resolva os problemas, é muito importante definir objetivos e metas com clareza e realismo, ouvindo os protagonistas no terreno de forma estruturada, para se poderem apresentar soluções refletidas e negociadas, conseguir uma boa articulação de fundos, nomeadamente o PEPAC e o PRR, abrir os programas de desenvolvimento regional para investimentos na bioeconomia e na inovação florestal, e reforçar os contributos nacionais do Fundo Ambiental. E, mais do que tudo, simplificar os processos e procedimentos e libertar os instrumentos de apoio do emaranhado burocrático que colide com os objetivos de política pública e entorpece a iniciativa privada.
A floresta tem sido apontada como um dos fatores para a recuperação social e económica de Portugal na próxima década. Acredita que o setor é capaz de agarrar essa oportunidade?
A floresta é um recurso importante do país, que tem sido pouco cuidado, por razões diversas e muito complexas. Os níveis de investimento foram sofrendo altos e baixos, as taxas de recuperação são muito mais lentas que as taxas de degradação e não se atendeu à complexidade dos fenómenos biofísicos e à perda irreversível de capital natural. A floresta e os ecossistemas florestais estão agora mais pobres em valor ecológico, em valor económico e em valor social. Décadas de degradação não se revertem de um dia para o outro. Mas podemos iniciar um ciclo novo, agora que tomamos consciência coletiva do estado de necessidade da nossa floresta e de como a existência de uma gestão ativa é um fator crítico de sucesso. É preciso fazer da floresta um espaço de diálogo e consensos mínimos, e não um espaço de confronto de interesses. É preciso capacitar os produtores florestais e as suas organizações, e reforçar a ligação entre a indústria e a produção. E é essencial aproveitar este ciclo de fundos, nos recursos como nas prioridades, para fazer as transformações que se impõem, com ambição e os pés bem assentes no chão.
Quais são os grandes desafios para as próximas décadas?
Um grande desafio é, desde logo, legislar menos e concretizar mais. O pacote legislativo recentemente aprovado introduz mudanças suficientes e a questão do cadastro e do valor social da terra foram salvaguardados. Agora, temos de avançar. Tenho afirmado que há muito mais arquitetura que engenharia na política florestal. É preciso simplificar os instrumentos de planeamento florestal e concretizar a escala da paisagem na transposição dos instrumentos de ordenamento e gestão territorial. Mudar a cultura na relação e criar mecanismos de controlo baseados na confiança entre administrações e agentes privados. Ter uma administração pública capaz de compatibilizar rigor, transparência e proporcionalidade, e estar do lado das soluções.
“Em 2019 conseguiu-se, pela primeira vez, igualar investimento em prevenção e em combate. O país tem feito um enorme esforço na prevenção depois do ano dramático de 2017, que deve continuar por muitos e bons anos.”
Por outro lado, precisamos de ter políticas públicas ajustadas às diferentes realidades do país. Nesse sentido, temos duas questões marcantes na nossa floresta: os fogos e os processos de desertificação. Creio que, relativamente à floresta de minifúndio que arde, o Governo fez escolhas, definiu uma estratégia, um plano e um programa de ação, com uma imensa lista de projetos, mas, acima de tudo, com uma orientação para os resultados. O Programa de Transformação da Paisagem é o bisturi para as ações cirúrgicas no território, com novos modelos de organização e novas modalidades de financiamento, a remuneração dos serviços dos ecossistemas. É aqui que o PRR se posiciona para intervir. O plano de combate à desertificação, estando inscrito no Programa Nacional de Investimentos 2030, não o encontro plasmado em nenhum dos instrumentos financeiros que conheço, sendo essencial assumir uma abordagem agroflorestal sistémica e integradora.
Um dos maiores défices do setor tem a ver com a informação. Como olha para esta questão e que soluções preconiza?
A introdução de inteligência e coordenação da informação florestal torna-se um imperativo neste novo ciclo, a par da geração de mais conhecimento e mais inovação, fazendo-se uma melhor utilização dos bancos de dados, das tecnologias e dos serviços por satélite. A criação de um Sistema de Informação Florestal deverá permitir uma articulação entre atores públicos e privados, concretizada através de uma plataforma de governação integrada, agregadora de dados e promotora de pensamento sobre os sistemas de produção e os ecossistemas florestais, gerando informação em modo aberto e produzindo ferramentas que correspondam a necessidades de gestão por parte dos utilizadores, mas, também, ferramentas educativas e formativas para promoção de alterações comportamentais de decisores e cidadãos.
“Estamos em perda de matérias-primas florestais e isso coloca problemas de abastecimento industrial, num país que tem a maior produtividade primária líquida entre os ecossistemas europeus.”
Nem sempre a legislação tem resolvido os problemas no terreno, como se percebe no contacto com os agentes locais, de proprietários a associações. O poder político tem andado distante da floresta?
O poder político está muito mais desperto para as questões florestais. Os sucessivos Conselhos de Ministros dedicados à floresta e a própria posição do Presidente da República deram uma nova centralidade à questão florestal. É preciso aproveitar essa centralidade para fazer a mudança. Creio que o segredo está em saber aproveitar melhor a energia dos agentes que existem no terreno, como “braço armado” da transição rural que é necessário encetar. Só estabelecendo redes de confiança e responsabilidade se poderá atingir resultados num curto espaço de tempo.
O investimento na defesa da floresta tem privilegiado o combate em detrimento da prevenção, com claro ónus para proprietários e produtores.
Na verdade, em 2019 conseguiu-se, pela primeira vez, igualar investimento em prevenção e em combate. E o Programa Nacional de Ação no âmbito dos fogos rurais aponta mesmo para a inversão dessa relação. O país tem feito um enorme esforço na prevenção depois do ano dramático de 2017, que deve continuar por muitos e bons anos.
“O Programa de Recuperação e Resiliência é um balão de oxigénio extra que poderá ser importante para um setor florestal a necessitar de sair do estado de incerteza que a pandemia agravou.”
Portugal é um país pequeno, mas com realidades distintas no ordenamento do território. As novas Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP) são uma solução para o problema estrutural da propriedade?
As AIGP são uma solução encontrada para redinamizar as Zonas de Intervenção Florestal e outras formas coletivas de gestão florestal. Creio que é essencial que sirvam também para acelerar processos nos Agrupamentos de Baldios, adaptando-se a diversas realidades concretas dos territórios, não tomando apenas a recorrência de incêndios como critério, mas todas as dimensões inerentes aos processos corretivos que se pretende induzir. Creio que este mecanismo é muito interessante, devendo ser aprofundado à medida que forem sendo conhecidas as intenções de investimento. No essencial, as empresas e os produtores florestais esperam estabilidade na estratégia a implementar, pois quaisquer investimentos, pelo tempo necessário para alcançar objetivos, obrigam à continuidade das medidas de apoio e de incentivos. Tal como defendi para os Agrupamentos de Baldios, é essencial encontrar na criação das AIGP parcerias alargadas com outros agentes, nomeadamente as autarquias e as indústrias, para planos com músculo de médio e longo prazo, em termos de iniciativas de gestão e mobilização de recursos.
Portugal tem três fileiras fortes – o pinho, o sobreiro e o eucalipto. Como vê o seu contributo para o desenvolvimento socioeconómico do país, nomeadamente no Interior?
Todas as fileiras florestais são igualmente importantes. Sabemos que estamos em perda de matérias-primas florestais e isso coloca problemas de abastecimento industrial, num país que tem a maior produtividade primária líquida entre os ecossistemas europeus, logo não se podendo desaproveitar esta preciosa vantagem. Há questões sensíveis a precisarem de ponderação e estudo, como o contributo da floresta para a política energética, nomeadamente, a disponibilidade e os usos da biomassa. Por outro lado, há territórios em risco por via de opções erradas no ordenamento e gestão florestal, sendo necessário corrigir trajetórias, com uma melhor integração das fileiras. O mapeamento e a valoração dos serviços ecossistémicos são essenciais para podermos perspetivar em cada território o equilíbrio existente entre serviços de provisão, isto é, os serviços resultantes das diversas produções e produtos, e os serviços de regulação, isto é, os serviços associados aos sistemas ecológicos, bem como avaliar os serviços culturais, importantes do ponto de vista paisagístico e social. É preciso aprofundar esta matéria, para encontrar mecanismos de justa remuneração desses serviços prestados pela floresta, mas também para reequacionar políticas públicas e estratégias industriais.
“O abandono é sintoma da falência do mundo rural, sendo necessário respostas estruturantes e estruturais apropriadas. Estamos perante um desafio intergeracional que requer a mobilização de toda a sociedade.”
Além disso, falar hoje de florestas tem um sentido mais lato, inclusivamente do seu potencial económico. Os espaços florestais são geradores de múltiplos benefícios e serviços, mas também de inúmeras atividades económicas de base local, que permitem potenciar esses territórios para novas oportunidades sociais e económicas. É necessário materializar uma visão integrada no desenvolvimento da estratégia de intervenção no Mundo Rural.
Que papel pode desempenhar a indústria no desenvolvimento florestal?
A indústria é um parceiro essencial para dar valor à floresta. Mas tem de contribuir para dar valor na tripla dimensão ecológica, económica e social. Tem de estar mais próximo da produção, garantir contratos que permitam dar alguma previsibilidade e pagar, justamente, a matéria-prima. Além disso, deve investir em parcerias estratégicas com as Organizações de Produtores Florestais e os Baldios para investimento direto na produção, partilhando custos e mutualizando riscos, para uma melhor gestão coletiva.
Como analisa o trabalho que a indústria da pasta e do papel está a realizar na floresta de eucalipto em Portugal?
A indústria da pasta e do papel é potente e inovadora, sendo um dos líderes mundiais do setor. Nessa trajetória, as políticas públicas desempenharam um relevante papel de cofinanciamento do investimento em desenvolvimento tecnológico e produtivo das empresas. Creio que o país não está em condições de desperdiçar esse potencial de riqueza. Há novos caminhos a ser percorridos pela indústria e uma reaproximação à produção, com projetos comuns que mobilizam milhares de produtores para uma gestão mais ativa. Mas esta relação virtuosa deve ser aprofundada numa perspetiva de parcerias estratégicas territoriais, multidimensionais, que contribuam para uma floresta de eucalipto mais produtiva, como parte de territórios mais resilientes, melhor ordenados e bem geridos. Neste reposicionamento industrial seria vantajosa uma negociação política com o Governo no sentido de saber o que se espera da sua intervenção, enquanto parte interessada no processo de transição em curso, e usar toda a margem de manobra para aprofundar uma estratégia corporativa de responsabilidade social e ambiental, enquanto gestores de capital natural, com uma visão de longo prazo, dando contributos efetivos para o cumprimento de metas da descarbonização e da preservação de ecossistemas e da biodiversidade.
Como vê a influência e a ação do poder local na relação com a floresta e os seus atores?
O poder local é um novo protagonista na floresta, e creio que bem importante. Não vejo as autarquias como gestores florestais, mas como entidades de suporte a estratégias territoriais alargadas, onde os espaços rurais devem ser integrados, na perspetiva da criação de infraestruturas verdes, geradoras de valor e de emprego. No quadro desse novo posicionamento autárquico, é essencial o papel das comunidades intermunicipais, pois permitem dar escala e coerência aos exercícios de planeamento, ordenamento e gestão florestal.
O presidente da Associação Nacional dos Municípios Portugueses já afirmou que “quando a nossa floresta for socialmente útil e geradora de riqueza estará quase tudo resolvido”. Comunga desta ideia?
Procuro sempre relativizar as questões e, portanto, não consigo ter uma visão tão tremenda do papel da floresta no país. Mas partilho da ideia subjacente a essa afirmação da importância crucial da floresta para grande parte do território nacional.
Assumiu a pasta da Secretaria de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural logo após a tragédia de Pedrógão Grande. Como foi essa experiência?
Desafiante, intensa e muito marcante. Sinto que muito do que fizemos está a ter continuidade. E só o tempo permitirá conhecer os resultados. O que importa, agora, do ponto de vista pessoal, é que continuo atento e empenhado, dando o meu contributo sempre que sinto que posso ser útil, usando essa experiência acumulada.
2017 marca um antes e um depois na floresta nacional? De que forma?
Na tomada de consciência coletiva. O choque foi tremendo. Foram feitos muitos investimentos na resiliência dos territórios, abertos novos espaços de diálogo e mobilização das organizações de produtores e baldios, concretizada uma maior articulação entre os agentes da prevenção e do combate aos incêndios florestais e implementados novos métodos de planeamento e monitorização de resultados. Mas é preciso que a floresta não se confunda com fogo, mas seja encarada como um bem precioso que é preciso preservar, desenvolver e valorizar. É preciso manter viva a memória, mas procurar alterar a mensagem, tornando-a mais pedagógica, mais positiva e mais abrangente. O abandono é sintoma da falência do mundo rural, sendo necessário respostas estruturantes e estruturais apropriadas, nacionais e europeias, com o sentido de longo prazo. Estamos perante um desafio intergeracional, que requer a mobilização de toda a sociedade.
O artigo foi publicado originalmente em Produtores Florestais.