Perdizes e perdigotos, lebres e coelhos, em estado natural, com comida farta e água. Aqui se criam populações crescentes e ricos ecossistemas que até já atraíram famílias de linces ibéricos, graças à gestão de Alcario. Assim se vive na Zona de Caça Turística do Pereiro.
“Olhem ali! Vai ali uma com os perdigotos todos atrás, isto é tudo gente nova. E aquela anda a gritar pelo pequenito, a chamá-lo, olhe ela à procura do pequenino.” A Carlos Alcario não lhe chegam os dedos para apontar as perdizes que nos correm à frente pelo caminho de terra, seguidas pelos perdigotos acabados de sair dos ovos, outros de duas semanas, de um mês. E o entusiasmo de ver a terra viva não lhe cabe no peito. “Isto é um mundo. E foi criado aqui por nós”, orgulha-se, olhos postos na Alcaria Alta que fica a um quilómetro da fronteira com Espanha e marca o fim dos 15 mil hectares que compõem a Zona Turística de Caça do Pereiro, que rasga a meio o concelho de Alcoutim, com a ribeira da Foupana a atravessá-la.
As estradas que permitem circular, que abrem espaço aos bombeiros e lhes dão acesso a pontos de água, foram feitas na gestão de Alcario, que toma conta da área que conseguiu juntar 796 proprietários numa zona de caça única no país. Apesar da aridez da terra e de passar metade do ano debaixo de 30 graus, há uma década que não há fogo que ali pegue – “quando cá cheguei, há 15 anos, ardiam uns 300 hectares todos os anos”, relata, a frase várias vezes interrompida para lhe seguirmos o olhar até mais um bando de perdizes, um coelho a espreitar no meio delas, a beber na charca mais adiante enquanto o calor da manhã não se instala e os leva ao recolhimento.
Às 8.30 da manhã, o sol já perdeu a piedade e poucas sombras se levantam no campo a encher-nos os olhos de amarelo torrado. À frente, a sementeira plantada pelos gestores da reserva para que os animais tenham o que comer durante os meses mais duros – a caça e os restantes, que ali têm chegado graças à gestão profissional que garante a preservação dos habitats, que criou um riquíssimo ecossistema. Graças ao trabalho feito a cada dia do ano pela gestão de Alcario da Zona de Caça Turística do Pereiro, garante-se as condições ideais do terreno, a limpeza do mato e da esteva que sempre ameaça tomar conta do campo, a comida farta e a água – foram instalados pela propriedade 500 bebedouros artificiais, a somar às charcas e à ribeira – para as espécies que ali se fixaram. Nos últimos anos, tem chegado de tudo – e Alcario conhece cada espécie, pelo nome e pela quantidade ao dia de hoje. Há populações enormes de veados que imigraram de Espanha pelas melhores condições de vida que encontraram em Alcoutim, “há três águias-de-bonelli, que era coisa que aqui nunca existiu, há abetardas, barrigas-negras e até famílias de linces ibéricos, graças a este mosaico que aqui criámos”, relata.
Como é que alguém tão apaixonado pela natureza, pelos bichos, pode ser caçador? Conhecendo quem se dedica à atividade cinegética e ao mundo rural real, para lá das mensagens truncadas fabricadas nos meios urbanos, esse amor pela vida e pelo campo é uma realidade absoluta. Alcario explica: “O homem é caçador, está-lhe no ADN. Como o campo está. E para haver caça tem de haver condições dos habitats.”
Osvaldo dos Santos Gonçalves, presidente da Câmara de Alcoutim, garante que “a primeira preocupação de quem caça é preservar”. Ele próprio caçador há mais de 20 anos, tantos ou mais do que os de agente bancário ou na vida política (PS), conta, ainda com visível consternação, o “crime” a que assistiu há dias, em que um carro a passar na estrada atropelou uma perdiz e os seus perdigotos. “Aquilo cria uma sensação de perda e de revolta…A nossa vontade e querença é ver os bichos a crescer, é vê-los criar.”
O enorme desconhecimento do mundo rural
Osvaldo lamenta que, a partir da cidade, as visões do mundo rural cheguem distorcidas e radicalmente erradas. “Há um desconhecimento enorme, não se tem noção da realidade e define-se a partir da cidade e dessas noções o destino do país rural”, lamenta, destacando o peso cada vez menor que o campo tem nas instituições decisoras dos seus destinos. “Qualquer prédio na Amadora tem mais votos do que as freguesias de concelhos rurais e isso fez-nos perder representatividade. Se a questão dos animais não for percebida como é, que as pessoas tratam bem as coisas, cuidam, se preocupam – mas quem cuida de um porco durante o ano é para o comer, não para o levar a passear -, os campos vão morrer.”
O que vaticina tem que ver não só com a destruição dos ecossistemas – “sem intervenção humana, não sobrevivem, os campos ficam invadidos por mato, as espécies deixam de lá entrar, vêm os fogos extremos e a desertificação. É uma perda imensa”, resume António Paula Soares, engenheiro biofísico e presidente da Associação Nacional de Proprietários Rurais, Gestão Cinegética e Biodiversidade (ANPC). Tem que ver também com a fuga dos poucos que ainda teimam em ficar a fazer vida por Alcoutim, se lhes roubarem o sustento.
“Vivem aqui 2500 pessoas e trabalham sobretudo na função pública, alguns na silvicultura e no fabrico do pão. A caça faz toda a diferença porque traz emprego e anima a região em alturas em que não haveria turismo.” As jornadas de trabalho sazonais ligadas à atividade cinegética são nos meses de outono e inverno, fora das tradicionais épocas turísticas. E já ali levaram personalidades de monta, como o rei Carlos Gustavo da Suécia, que caçou no Pereiro em 2019.
“Há que desmistificar essas ideias de que os caçadores são anormais, a cinegética é normal, faz parte da nossa ambiência, do mundo rural, da história e da cultura do país e é fundamental na defesa da biodiversidade”, vinca o autarca. Que também olha os números e a sustentabilidade económica da sua região, se o potencial cinegético fosse levado a sério por Lisboa.
Em termos nacionais, a atividade cinegética tem um impacto de 330 milhões de euros/ano, mas o valor potencial por explorar está muito além desse: os estudos da área apontam para 812 milhões de euros desperdiçados todos os anos diretamente da caça. A que depois se soma o