A política agrícola comum (PAC) nasceu no princípio dos anos sessenta do século passado e esta década do século XXI é, porventura, o período mais complexo da sua história recente, devido a uma convergência inusitada de fatores críticos como são as grandes transições em curso – climática, energética, ecológica, digital, geopolítica – as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, a crise profunda do multilateralismo global que coloca em risco a regulação comercial, a cooperação e a ajuda internacionais e, por último, uma crise por antecipação, a saber, o que decorre e é preciso fazer a propósito do próximo alargamento ao leste europeu. O conjunto destes fatores disruptivos altera substancialmente os custos de contexto, de transação e de oportunidade dos sistemas agroalimentares europeus e das cadeias de valor globais do comércio internacional.
Sabemos que até 2050 estaremos em estado de emergência climática por causa da neutralidade carbónica e da ação climática que estamos obrigados a cumprir. Essa é, também, a razão pela qual a reforma da PAC para as próximas décadas deve revestir uma orientação mais agroecológica e territorializada com base em sistemas agroalimentares (SAL). agroflorestais (SAF) e agropaisagísticos (SAP), eles próprios concebidos e desenhados para desempenharem funções de infraestrutura ecológica e corredores verdes.
Sabemos que em mercados abertos e globalizados, mas insuficientemente regulados, há mais intensificação agrária e, correlativamente, maior pressão sobre os recursos naturais (o solo), os ecossistemas e a paisagem e sabemos, também, que uma agenda política mais produtivista e mercantilista acarreta o empobrecimento das comunidades locais e das formas de agricultura mais tradicional, assim como, um crescente empobrecimento e simplificação dos ecossistemas, com abandono, fragmentação e concentração da propriedade.
Sabemos que, no quadro da PAC, a relação entre sistemas agrários, biodiversidade e ecossistemas pode ser abordada numa aceção que poderíamos designar de reserva estratégica alimentar e conservação de recursos e que, neste plano, sendo Portugal um mercado pequeno em termos agroalimentares, deveríamos recolocar a nossa estratégica produtiva e alimentar numa abordagem mais ampla e compreensiva tendo em vista cumprir um leque convergente de objetivos fundamentais, a saber: o ordenamento do território associado aos mosaicos paisagísticos, os sistemas alimentares, a prática agroecológica e a conservação de recursos, a conexão entre unidades de paisagem, biodiversidade e serviços de ecossistema, a relação de complementaridade e integração cidade-campo por via das infraestruturas verdes e dos corredores ecológicos.
Sabemos, ainda, que, se não houver um equilíbrio bem proporcionado entre a via produtivista e mercantilista, mais globalizada, e a via dos sistemas agroalimentares de base local e regional, estaremos, progressivamente, a consumar a separação entre a reserva estratégica alimentar, a biodiversidade correspondente e a coesão dos territórios que as acolhem. Não surpreenderá, então, que assistamos a uma concentração do poder de controlo sobre os recursos naturais, ao alargamento das escalas de produção, à disseminação das monoculturas intensivas, à monotonia biofísica e ao empobrecimento da diversidade social dos territórios.
Sabemos, finalmente, que, no plano da política doméstica, assistiremos a uma profunda alteração das relações de poder implicadas por esta mudança de escala e de intensidade, que privilegia os sectores a jusante da fileira (distribuidores, transportadores e grandes retalhistas) em detrimento dos sectores a montante (proprietários e agricultores, pequenos e médios empresários e aglomerações do interior). Quer dizer, sem uma regulação institucional forte que imponha regimes de reciprocidade no comércio internacional e proporcione uma abertura para externalidades positivas fundamentais, no ambiente, conservação dos solos, biodiversidade e ocupação dos territórios desfavorecidos, não haverá condições externas favoráveis para reterritorializar muitos espaços e outras tantas relações cidade-campo, hoje severamente atingidas.
Agora que se fala tanto em emergência climática e redução das pegadas ecológica, energética, hídrica e carbónica, a questão mais pertinente nesta altura é, mesmo, a de saber se é ainda possível conceber e implementar redes locais de abastecimento agroalimentar e sistemas agroflorestais multifuncionais como parte de um programa integrado de agroecologia, economia circular e desenvolvimento rural, uma espécie de contrato social climático para redes de vilas e cidades de todas as dimensões e latitudes, sobretudo na chamada baixa densidade, aquela que se identifica com o nosso interior ou rural mais profundo. De facto, o que quero sublinhar é que a ação climática, o programa agroecológico (modos de produção regionalmente adaptados) e a economia circular podem ser uma excelente janela de oportunidade para os territórios de baixa densidade e, nessa exata medida, um campo experimental muito interessante para as redes colaborativas da economia local e regional. O programa integrado agroecológico, em particular, diz respeito a vários agros:
– O agroalimentar e conceitos como segurança, rastreabilidade e certificação;
– O agroflorestal e conceitos como ordenamento, uso múltiplo e certificação;
– O agroambiental e conceitos como responsabilidade verde, boas práticas e certificação;
– A agroconservação e conceitos como biodiversidade e serviços de ecossistemas;
– O agroenergético e o balanço energético, sequestro do carbono e créditos verdes;
– O agrorecreativo e as amenidades, o marketing terapêutico e a ecovisitação.
Neste contexto, o programa de trabalhos para o próximo futuro e para as áreas de baixa densidade pode ser muito prometedor. Na verdade, mesmo à nossa frente, está um programa imenso por cumprir cujos tópicos principais poderiam ser, assim, alinhados:
– As redes de produção descentralizada de energia
– As redes de produção local e multilocal de alimentos
– A gestão proactiva de ecossistemas e áreas protegidas
– A arquitetura biofísica e as artes da paisagem
– O turismo patrimonial, natural e cultural, em espaço rural
– As redes de cidades, a região-cidade e a smartificação do território
– As redes comunitárias de proximidade e serviços ambulatórios
Neste vasto programa agroecológico e territorial para as áreas de baixa densidade (e não só) é privilegiada, como se percebe, a formação de inteligência coletiva territorial (ICT), através da constituição de plataformas colaborativas apropriadas para o efeito. Um bom exemplo diz respeito aos laboratórios colaborativos que a PAC já autoriza, lá onde os serviços regionais, as instituições de ensino superior e as organizações profissionais possam fazer convergir os seus interesses, em particular, comparticipar e cofinanciar serviços de incubação empresarial, gestão agroambiental e extensão rural.
Não tenho dúvidas de que à sombra do pacto ecológico europeu e da transição digital o capitalismo verde irá florescer sob múltiplas formas e modalidades. Os vários ecoregimes da PAC, nos seus dois pilares (ajudas diretas de mercado e desenvolvimento rural), dizem-nos que a modernização verde chegará por intermédio de boas práticas agroambientais induzidas pela modernização tecnológica e digital. Não tenho dúvidas, também, que nos interstícios e nas margens destes investimentos do capitalismo verde irão aflorar as pequenas economias de proximidade herdeiras do velho modelo endógeno, agora organizadas em redor da capilaridade das pequenas redes locais, mercados de nicho e circuitos curtos.
Aqui chegados, importa não esquecer aquela que será a contradição maior da 2ª ruralidade, a ruralidade que emergirá durante e após as grandes transições, e que a PAC acabará por refletir nas suas próximas reformas. Refiro-me ao primado da industrialização verde feita de cima para baixo sob a influência, o patrocínio e o poder das grandes corporações agroalimentares globalizadas versus o programa agroecológico e agro-biológico feito de baixo para cima sob o patrocínio das pequenas corporações e dos pequenos poderes dispersos e difusos das ONG do ambiente, da ecologia e da biodiversidade.
Este contexto assimétrico não favorece a introdução de métodos e técnicas de produção agroalimentar assentes nos princípios de funcionamento dos agroecossistemas que precisam de mais espaço, mais tempo e mais informação para produzirem, plenamente, todos os seus efeitos positivos. A agroecologia multifuncional, em particular, sabe que tem razão, a médio e longo prazo pelo menos, mas não tem o poder do seu lado. O poder dominante prefere privatizar o benefício e socializar o prejuízo, porque sabe que o princípio do poluidor-pagador é um princípio de simples mitigação e que os movimentos de proteção do ambiente são, cada vez mais, condicionados e capturados pelos estudos de impacto e avaliação ambiental de que dependem para subsistir.
Para comprovar esta assimetria basta observar o que se passa com as novas métricas de sustentabilidade criadas pelas grandes corporações e respetivas consultorias internacionais, por um lado, e as limitações e restrições que tolhem o passo ao desenvolvimento da agroecologia multifuncional, por outro.
Vejamos as principais restrições e limitações:
– O mercado não incorpora, ainda, valor suficiente nos produtos agroecológicos;
– A política pública não compensa suficientemente as perdas transitórias de rendimento;
– A pequena dimensão das explorações não permite uma boa agroecologia multifuncional;
– Os custos de contexto europeus são muito pesados para as pequenas explorações;
– Os custos de contingência são cada vez mais frequentes, intensos e aleatórios;
– O défice associativo e organizacional do movimento agroecológico é significativo;
– O défice de tecido empresarial em agroecologia multifuncional é significativo;
– O défice de investigação aplicada e extensão agroecológica é, também, significativo;
– O risco agroecológico de certos processos de conversão malconduzidos é elevado.
Dito isto, é fácil perceber que a agroecologia multifuncional não serve de modelo universal, nas atuais circunstâncias, não obstante as referências contidas nos seus princípios gerais serem de validade universal. Todavia, e numa abordagem mais pragmático, creio que poderiam ser definidos Contratos e Programas Integrados de Desenvolvimento Territorial, por exemplo, coincidentes com as Comunidades Intermunicipais (CIM) e, nesse âmbito, serem criadas estruturas de missão para a gestão de tudo o que diga respeito a medidas de ação climática, de adaptação e conversão agroecológicas em sentido amplo e de economia circular, uma gama imensa de medidas que podem ser desenvolvidas num tecido capilar constituído, por exemplo, por laboratórios colaborativos, serviços regionais, cooperativas agrícolas, zonas de intervenção florestal, centros de investigação, associações de desenvolvimento local, parques agroecológicos municipais, parques naturais, quintas pedagógicas, recreativas e terapêuticas, campos de férias e trabalho, etc. No plano financeiro, estes programas integrados de base territorial poderiam ser financiados por uma combinação virtuosa de mercado, contrato e financiamento participativo. Conceber e configurar este financiamento a três dimensões não é tarefa fácil, mas nele reside o segredo da sustentabilidade destas economias locais e regionais. As CIM poderiam ser a região-cidade e o ator-rede capazes de abraçar este grande desafio tirando partido da massa crítica de competências que passarão a reunir. Esta missão seria, também, uma prioridade da agenda científica e académica, num país em que as escolas superiores agrárias e as universidades se estendem pelo mundo rural adentro.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve