O que foi feito e o que devia ter sido feito na sequência dos grandes fogos dos dois últimos anos em Portugal? A Terracrua (terracruadesign.com), pequena empresa sediada em Faro, tornou-se uma referência em projetos ligados à ecologia e sustentabilidade, regeneração florestal e estratégias pós-fogo. Nuno Mamede é ali consultor, designer e gestor de projetos. Partilha connosco um olhar desde o terreno.
No verão passado, aconteceu em Monchique o maior incêndio da Europa. Arderam 27 mil hectares, durante uma semana. Como o viveu?
As entidades que nos deveriam proteger, mais uma vez, não estiveram à altura do desafio. É muito triste quando nos apercebemos que ninguém protege o país rural. Parece o “deixa arder”. Parece que o papel dos bombeiros está a ser reduzido a organizar evacuações e proteger as estradas.
Quem realmente parou o incêndio foi a paisagem, na transição dos solos de xisto para os calcários do Barrocal Algarvio. Era previsível para onde se dirigia o fogo, e era sabido na terceira noite (antevia-se mudanças na velocidade e direção do vento) que se o deixassem chegar ao alto da Fóia projetaria fogo para a serra sul de Monchique.
Que lições se devem tirar?
Acho essencial que se entenda que um território sem população e entregue a monoculturas florestais está condenado a arder. Um território rural como nós temos, cheio de vegetação emergente, mas sem animais de médio e grande porte (veados, gamos, cavalos, vacas) em estado selvagem (que estimulam arbustos e árvores a subir), está condenado a depender de atividades humanas para ser conduzido a um estado florestal multiestratificado e equilibrado. A rentabilidade das monoculturas de eucalipto e pinheiro bravo não permite uma gestão equilibrada da paisagem – por exemplo, através de cortes e desbastes seguidos de tritura e deposição nos solos, ou de pastos/adubo verde nas entrelinhas das explorações, que permite a médio-longo prazo fertilizar os terrenos e hidratar a paisagem, reduzindo a gravidade dos incêndios. Há de chegar o dia em que atribuímos o valor a estas duas funções ecológicas: a “construção” de solo e a infiltração de água no solo. E desta forma valorizar as práticas mais ecológicas, e as próprias produções.
A ação sobre as terras ardidas parece ser tão preocupante quanto os próprios incêndios… Porquê?
A diferença entre sucesso e fracasso reside na escolha acertada da ação ou técnica. Entre as muitas ações de intervenção pós fogo disponíveis, temos a cobertura de solo, que se aplica na tentativa de evitar a perda de solos e nutrientes, e possíveis contaminações dos sistemas ripícolas [nas margens dum curso de água]. Se for atempadamente planeado, sementeiras diretas no território ardido (por meio de avião) é a opção mais atingível, conseguindo cobertura de solo por via de prados, e com um custo quase residual comparado ao mulch [cobertura de solo] com recurso a fardos de palha [utilizado por exemplo na Galiza após os incêndios de 2017].
Como vê a obrigatoriedade de “limpeza” dos terrenos ditada pelo governo?
A informação que se tornou pública é simplista e induz em erro. Para além das distâncias, devemos considerar a natureza e características de cada espécie arbustiva ou arbórea. Há dados que comprovam que algumas espécies, e em especial agrupadas, reduzem a força e o impacto do incêndio, ao contrário do pinheiro e eucalipto utilizados em larga escala em Portugal. Do estado era de esperar um bom exemplo, quer na informação, quer na disponibilização de equipas e maquinaria para intervenções pós fogo, numa escala que não a da fotografia para jornal ou da ação meramente simbólica.
Seria um bom precedente fundir os conceitos de manutenção/gestão florestal e prevenção de incêndios: num sistema ecológico-regenerativo seriam a mesma coisa.
Temos excelentes técnicos em áreas ligadas à floresta, não há desculpas para não se elaborar um guia sério de gestão florestal, quer em versão simples para o tema prevenção e à escala pequeno proprietário, quer a nível da “fileira florestal”, para integrar técnicas comprovadas de gestão de água nos terrenos, como o Design Keyline [técnica desenvolvida nos anos 50 na Austrália que tem em conta a topografia do terreno e o fluxo natural da água para otimizar a sua retenção e infiltração no solo] e o Design de Permacultura [também desenvolvido na Austrália, procura utilizar os padrões e características observados na natureza, integrando plantas, animais, construções e pessoas, para criar habitats produtivos e harmoniosos].
Como olha para o que tem acontecido no interior de Portugal na sequência dos grandes incêndios de 2017?
Tem havido vários exemplos positivos de iniciativa popular, e poucos exemplos inspiradores por parte do estado e instituições de gestão. As ações de intervenção florestal de prevenção continuam, no mínimo, simbólicas, e sem qualquer impacto territorial. Trata-se de ações isoladas e sem continuidade. Precisamos de informação concreta, simples, atual e pragmática, disponível em escala conforme a necessidade do território. Se conseguem enviar um e-mail a cada proprietário, conseguem enviar uma lista de critérios para intervenção, ou um infograma que informe como e quando fazer as limpezas florestais.
2018 foi um ano de viragem, de mudança de atitude face aos incêndios. Agora é de conhecimento geral as diferenças a nível de combustão de diferentes espécies. Carvalhos, castanheiros, oliveiras e árvores de fruta não lidam com o fogo da mesma forma que lidam pinheiros e eucaliptos. Sabemos agora que a continuidade e homogenia das plantações para a fileira florestal potenciam incêndios violentos, ainda que sejam “limpos” de vegetação arbustiva ao nível do solo.
Que exemplos inspiradores tem observado?
A comunidade de Pedrógão Grande, e as ações organizadas através da Associação Raiz Permanente. A Rede Reflorestar Portugal. E ações populares como a de Ferrarias de São João [aldeia de xisto na região de Coimbra onde os moradores decidiram em assembleia arrancar os eucaliptos em redor e plantar sobreiros). Preocupa-me que estas boas ações não sejam replicadas. Penso que todas as boas iniciativas são poucas, mas que o momento é agora.
“Desertificação é uma palavra complexa para algo simples. A menos que mudemos as nossas práticas no território, mais vale habituar-nos já a andar de dromedário e a comer tâmaras.”
Para quem cuida dum terreno, quais as ações mais importantes a tomar? E que erros deve evitar?
Um bom agricultor cultiva solos, e o resto é conversa. Manter e melhorar os solos férteis existentes (sobreviventes) é a tarefa mais importante que cada proprietário deve assumir. Pode integrar esta ótica em cada ação, mesmo mantendo as máquinas que utiliza, com ligeiras alterações nas práticas. Semear água também deve estar presente. Com pequenas ações, consegue-se aumentar a infiltração de chuva no terreno, mitigar a erosão e o perigo de incêndios graves. Controlar a erosão, recorrendo aos troncos queimados, ou com pequenas movimentações de terra, como valas de infiltração em contorno. Cobrir os solos, com sementeira de prado e/ou mulch (estilha, caruma, etc). Lidar com a biomassa restante sem a remover do local (tritura, deposição em curva de nível/contorno). Estruturar as novas plantações em valas de infiltração em contorno ou em terraças, para facilitar a manutenção e reduzir custos futuros.
Desertificação é uma palavra complexa para algo simples: o deserto expande-se e vem aí. A menos que mudemos as nossas práticas no território, mais vale habituar-nos já a andar de dromedário e a comer tâmaras. Existem pelo mundo fora excelentes exemplos de sistemas de gestão florestal sustentável, formas muito positivas de trabalhar o território. Escolas como o Design Keyline, o Design de Permacultura, a Agricultura Regenerativa, mostram-nos que, afinal de contas, um outro mundo é possível.
Entrevista realizada por Francisco Pedro
Créditos das Imagens: terracruadesign.com
legenda da foto: Intervenção pós-fogo da Terracrua em Monchique, visando a adaptação do terreno de forma a ser produtivo e a prevenir novos incêndios, implementando terraças em contorno e barragens
Publicado na Voz do Campo n.º 223 (fevereiro 2019)