Sem dúvida que a semana foi marcada, para além do debate sobre o Estado da Nação, pela suspensão do Acordo dos Cereais do Mar Negro (BSGI), ambos com impacto significativo no futuro do setor agroalimentar em Portugal.
Também não foi de somenos importância o estudo da CIP sobre a redução do IVA para 6% nos alimentos que são atualmente taxados a 23% (o que não se compreende, tal como nos petfood, sobretudo numa desvantagem comparativa face a Espanha) ou as posições da FIPA e da ASAE relativas ao aspartame e da DGAV no que respeita ao glifosato. Todas elas relevam as evidências científicas na base das decisões políticas e não a ideologia, o ruído das redes sociais, ou o peso da opinião pública e publicada.
São assim de saudar estas preocupações com o Agroalimentar e a Alimentação.
Quanto ao Estado da Nação, como se esperava, pese embora as pressões de muitas organizações representativas de diferentes setores junto do Governo e dos partidos políticos com assento na Assembleia da República, nas quais nos incluímos, pouco se falou de Agricultura ou de Alimentação, menos ainda de segurança alimentar. Pelo que sabemos, e perdoem-nos a injustiça, apenas vimos algumas interpelações do PSD, críticas que têm sido repetidas quase que diariamente, mas nenhuma questão concreta que obrigasse o Primeiro-Ministro – que ainda não respondeu a uma exposição da IACA e da ACICO sobre a situação da SILOPOR, por exemplo, – a “vir a jogo” e responder.
O líder do Governo não respondeu a nenhuma questão sobre esta matéria, porque, de facto, também nenhuma lhe foi diretamente formulada (pelo que vimos). Mas devia tê-lo feito. Devia mostrar que se preocupa com o Mundo Rural e o território, com o PEPAC e o aprovisionamento de Portugal. Perdeu-se uma excelente oportunidade de trazer o tema para a agenda política e mediática, pese embora a instabilidade de muitos agricultores e produtores pecuários face às repercussões da guerra na Ucrânia e à falta de clareza na transferência de funções do Ministério da Agricultura para as CCDR.
No que ao agroalimentar diz respeito, o Estado da Nação resumiu-se à análise de duas realidades paralelas: o maior ciclo de crescimento que é, na realidade, percecionado por pessoas e empresas como mais um ciclo de empobrecimento.
Nada de Agricultura, de Alimentação, de segurança alimentar, nem uma palavra sobre o outro tema, o segundo destas Notas, com grande impacto para um país que tanto depende da importação de matérias-primas essenciais: a suspensão do acordo dos cereais do Mar Negro.
Sim, porque isto anda tudo ligado!
No final de junho, em Bruxelas, numa reunião interna da FEFAC e em Portugal, num evento realizado com a USSEC, discutíamos com peritos internacionais a eventual prorrogação do Acordo dos Cereais do Mar Negro. Nessa altura, em Genebra e na Comissão Europeia, reinava o pessimismo e muitos dos analistas (confesso que não era o meu caso) previam que desta vez, não iria existir qualquer acordo porque a Rússia impunha condições de que não iria abdicar e os danos infligidos em junho sobre o pipeline de transporte de amoníaco, colocavam em causa os fertilizantes. Por outro lado, a Ucrânia talvez não estivesse assim tão interessada porque o ritmo de saída dos navios por esta via dava sinais de forte quebra desde maio, as perspetivas de exportação nesta campanha são naturalmente de quebra, privilegiando-se as chamadas Vias de Solidariedade. Aqui chegados, temos um outro foco de conflito que decorre das posições assumidas pelos cinco Estados-membros vizinhos da Ucrânia (Hungria, Polónia, Bulgária, Roménia, Polónia e Eslováquia) que, como era de esperar, pretendem a prorrogação do acordo de banir o consumo de cereais da Ucrânia de 15 de setembro até final do ano.
Dizia-nos um colega da Hungria que a indústria local necessita de importar pelo menos 3 milhões de toneladas de milho e que não podem consumir o cereal que atravessa o seu território, enquanto os produtores não vendem o seu cereal na expectativa de obtenção de melhores preços. Será uma falácia a questão dos stocks ou mero jogo político, que já levou, imagine-se, a Áustria, a reivindicar apoios aos seus agricultores pelos cereais provenientes da Ucrânia?
É tudo isto que está em jogo neste momento e importa reter, quando Portugal vai ter de importar infelizmente mais cereais devido à seca – o pior ano de produção de sempre – e Espanha, pelas mesmas razões, irá necessitar de 25 milhões de tons, um volume record.
Os últimos dados disponíveis apontam para a saída da Ucrânia de um total de 71,8 milhões de tons, dos quais 42,4 milhões através das vias de solidariedade (inclui também derivados de cereais e produtos agrícolas em geral) e 29,6 milhões de tons ao abrigo do acordo do Mar Negro. No entanto, se olharmos para os principais beneficiários do BSGI, temos a China na liderança, bem como a Espanha e a Turquia, e mais 3 Estados-membros (Itália, Holanda e Portugal no top 10) com os restantes países a serem de facto países pobres (os chamados em vias de desenvolvimento), destacando-se o Egipto, no que pode ser um “barril” de pólvora.
Enquanto tudo isto decorre, a Ucrânia quer um acordo sem a Rússia (será possível?) e a União Europeia aposta no reforço das Vias de Solidariedade, com um anúncio de investimento de 6,2 biliões de euros em infraestruturas de ligação entre a Polónia e a Ucrânia, e entre a Roménia e a Moldávia.
Nesta geopolítica cada vez mais complexa, em que a China e Índia podem ter um papel relevante, desde logo no aumento da procura de cereais no mercado mundial, fragilizando ainda mais a Europa (e Portugal), a primeira reação foi o aumento de preços, a começar no trigo em torno dos 5%, com a cevada também a ressentir-se. Mas esta instabilidade – nos transportes, nos prémios, nos seguros – tenderá a aumentar até que um acordo que, ainda parece possível, se concretize na prevista reunião entre os Presidentes da Rússia e da Turquia em agosto.
Felizmente para a Europa, os preços de outras commodities, como o gás e a energia, estão relativamente contidos, mas os dos cereais e oleaginosas poderão tender a aumentar. Esta tendência já é visível nos mercados de futuros, para final de 2023 e, em alguns casos, início de 2024. Com um mercado como o nacional e dada a conjuntura, é ainda mais importante que a SILOPOR e as operações portuárias funcionem como um fator de competitividade e não como elemento de constrangimento.
Pelo que sabemos, nada mudou na situação desta empresa nos últimos tempos. A indiferença do Governo parece ser a sua marca registada no que toca a uma das empresas que mais recebe matérias-primas que permitem alimentar o seu povo.
Entretanto, já temos notícias de barcos ao largo, mais custos de sobreestadia, falta de investimento, equipamentos que se deterioram a aguardar reparação. Infelizmente, já não sabemos o que mais dizer ou escrever, neste “diálogo de surdos” para que algo mude.
Em 14 de outubro escrevíamos que estávamos a viver “Ao ritmo da Guerra” e assim continuamos 10 meses depois.
No entanto, atualmente confrontamo-nos com alguns produtos com preços em quebra como é o caso do leite ou dos bovinos de carne, produtores que têm de vender os seus animais, reduções de consumo, quando é de esperar que os custos de produção tendam a subir.
É urgente que os agricultores recebam as ajudas mais rapidamente, que a situação do PEPAC e das candidaturas ao Pedido Único não comprometam os apoios e que se mantenham as medidas como o prolongamento do IVA ZERO nos alimentos para a alimentação humana e também na alimentação animal.
Foi tudo isto que se não ouviu falar, nem parece ser levado a sério na Assembleia da República, no Debate da Nação, ou fora do Parlamento, ao nível do Governo.
A segurança alimentar, com todos os seus contornos é um tema demasiado importante para que não se definam, e discutam com o Setor, políticas públicas coerentes.
A insegurança paga-se caro. Vai ser preciso faltar comida para percebermos o que está em causa?
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA.
As infraestruturas portuárias não podem ser forças de bloqueio – Jaime Piçarra
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