Sem água não há arroz
Se a barragem de Santa Clara está a 35% da sua capacidade, outras há na região sul do país ainda em pior situação. Pouco mais acima, em Campilhas, já na bacia hidrográfica do Sado, o armazenamento está a 12%; Bravura, no Barlavento Algarvio, apresenta 13%. Numa e noutra foram mesmo canceladas as campanhas de rega para este ano, deixando vários produtores sem solução. Na zona de rega de Campilhas, com forte tradição na produção de arroz, “são 1000 a 1500 hectares que ficam sem qualquer produção”, diz Rodrigo Capela, da APARROZ, agrupamento de produtores de arroz do Vale do Sado.
Mas mesmo nas zonas regadas por outras albufeiras da bacia do Sado “os problemas são enormes” com a seca refletida nos terrenos, sublinha. Por exemplo, “maior dificuldade em controlar os infestantes, o que faz com que a cultura perca produção”. Além disso, “com a secura dos solos, é necessária muito mais água para produzir a mesma quantidade de arroz de anos normais, o que dispara os custos”.
É o que acontece com José Cecílio, produtor de arroz que tem cerca de 100 hectares na zona de Alcácer do Sal. “Estamos a gastar o dobro da água”, garante. Nestes campos, o rei é o arroz carolino, “o melhor, aquele arroz mais soltinho”. “Diz-se que este é o “arroz de” e o outro, o agulha, é o “arroz com”. Este é o arroz de marisco, arroz de tomate, arroz que se come sempre fresco. O outro é o arroz com qualquer coisa porque dá para aquecer e comer ao longo de vários dias”, explica. “Só nós e Itália é que produzimos bem este arroz”, diz.
Agora, a água é “o fator de produção mais caro nesta atividade”, constata José Cecílio, que aponta para uns 400 a 500 euros por ano em consumo de rega. Ainda assim, o produtor sadino tem investido em “melhores máquinas e técnicas” para reduzir as necessidades de água. A técnica da “sementeira em linha”, por exemplo, poupa “uma percentagem muito grande de água” – “em vez de 150 dias, o campo já só precisa de ficar alagado cerca de 120”, assegura Rodrigo Capela. Atualmente, “já se conseguem médias de 9 a 10 mil metros cúbicos de água por ano”, diz Cecílio. Em 1995, quando começou a produzir arroz, “gastava-se uns 16 mil m3 e nem se tinha a preocupação de monitorizar”.
Se os custos de produção aumentaram, os preços finais de venda do arroz também, fruto da disrupção internacional provocada pela guerra na Ucrânia, o que permitiu “ir aguentando”, admite José Cecílio. Mas o futuro é cada vez mais incerto. No entanto, constata, “não há muita alternativa ao arroz”. “Se não der [o arroz] não sei o que será destas terras”. Ainda assim, pior está a pecuária, avalia. “Aí é que o problema é grave. Temos quebras de 80% nos fenos das pastagens, as nascentes para abeberamento estão a secar”. José mantém 150 vacas de raça autóctone mertolenga, mas “muitos estão a desfazer-se do efetivo todo”.
Porco alentejano em risco
Em Ourique, conhecida como a capital do porco alentejano, encontramos Jorge Nobre, um criador desta que é uma das raças autóctones mais ameaçadas. Nas suas terras, Jorge tenta manter as exigentes condições necessárias à validação da pureza dos animais, na maioria exportados para Espanha, onde na sua maioria vão ser transformados nos muito procurados presuntos Pata Negra. Um dos requisitos obrigatórios é que o porco se alimente exclusivamente com bolota nos meses finais da engorda, de outubro a janeiro – a chamada fase da montanheira, em que o animal pasta no montado (o típico ecossistema alentejano), a alimentar-se do fruto do sobreiro, para poder ser vendido com o selo de qualidade da raça.
Ora, com a seca severa que atinge este território, “o montado não produz, há muitas árvores a morrer”. Logo, ressente-se a produção de bolota. “Este foi dos piores anos”, refere Nuno Faustino, presidente da Associação de Criadores de Porco Alentejano (ACPA), sediada neste concelho do Baixo Alentejo. Nesta altura, os animais estão na fase da recria, de crescimento, um período de 14 a 16 meses que medeia entre o desmame e a montanheira final e no qual a alimentação é garantida no campo, “entre cereais e ervas”. Mas, com os terrenos secos, “também falta erva e tem de se gastar mais em ração, o que aumenta muito os custos”, conta Jorge Nobre. “Só nos últimos dois anos aumentaram cerca de 70% os custos com as rações”, frisa Nuno Faustino.
Esta é uma zona de sequeiro que não é abrangida por qualquer perímetro de rega público. “Toda a água que existe nesta região vem da chuva. E aqui simplesmente não chove”, lamenta-se o presidente da ACPA, num dia em que, ironicamente, é presenteado com uma rara chuva caída do céu. Ainda assim, uma precipitação praticamente “insignificante” face à dimensão do problema. “É preciso trazer alguma água a este território. Isto é sequeiro, mas não sobrevive sem água”, desabafa, em jeito de súplica.
“Se os criadores como o Jorge amanhã tiverem de ir embora, o que vamos ter nesta região? Sem ninguém a vigiar e cuidar do território, ficam os matos e os fogos descontrolados. Desertificação”.
Como fazê-lo, é “um desafio para os técnicos”, admite o suinicultor, na expectativa para ver avançar alguma das soluções que têm sido aventadas, sejam novas barragens, centrais dessalinizadoras ou “a tal autoestrada norte-sul” para a água, que permita fazer transvases de bacias hidrográficas do norte para o sul do país. Mesmo que isso implique aumentos significativos no custo da água? “Eu agora nem posso queixar-me do preço da água, porque simplesmente não a tenho”, contrapõe.
No cenário atual, “é a sobrevivência do porco alentejano e da pecuária extensiva que está em risco”, diz Nuno Faustino, realçando que houve já uma “redução grande do efetivo de porco alentejano, na ordem dos 30 a 50%”, nos últimos tempos, devido “aos efeitos da seca”. “Se os criadores como o Jorge amanhã tiverem de fechar portas e ir embora, vamos ter o quê nesta região? Sem ninguém a vigiar e cuidar do território, ficam os matos e os fogos descontrolados. Desertificação”, avisa.
Satisfazer a procura ou reduzir o consumo?
Neste dilema entre a sede de uns e a vontade de beber de outros, o facto é que Portugal surge apontado como um caldeirão de alterações climáticas em todos os modelos de projeção do clima no futuro. Na vizinhança da bacia do Mediterrâneo, a tendência é inevitavelmente para aumento de temperaturas e diminuição da precipitação, cenário propício para um território mais seco e menos produtivo, sobretudo a sul.
Para Sara Correia, que lidera o projeto MedWater, da Zero, precisamente dedicado às secas e […]