A meio do mandato à frente do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, Gilberto Igrejas quer aumentar o rendimento dos viticultores e a sustentabilidade social da região.
Com o ano a terminar, que balanço faz de 2020?
A economia mundial ficou marcada pela pandemia, e o setor vitivinícola nacional e a Região Demarcada do Douro (RDD) não foram exceção. Com os dados estatísticos de novembro – que são os valores percentuais mais positivos que tivemos desde março -, estamos com quebras globais de 10,6% em valor e de 6,6% em volume. Vendemos mais, mas à custa do preço unitário por garrafa. Nos vinhos do Douro, as exportações até melhoraram face ao período homólogo, no vinho do Porto houve uma ligeira quebra de cerca de 4%. No mercado nacional, o Porto tem quebras de 40% e o Douro de 17% e compreende-se. Praticamente fechamos ao turismo e quem consome vinho do Porto em Portugal são, sobretudo, os turistas.
Porquê?
As pessoas consideram sempre que é preciso uma ocasião especial para abrir aquela garrafa e arriscam-se a nunca a abrir. O consumo do vinho do Porto devia ser comum, um momento aprazível, descomplexado. E, por isso, estamos a apostar em campanhas, designadamente junto dos consumidores mais jovens, que estão muito afastados deste tipo de bebidas, para o consumo moderado e regrado dos vinhos do Porto.
Mesmo assim são quebras menores do que se temia inicialmente.
Em face do ano que tivemos, e tudo indica que os valores finais do ano não vão andar muito longe disto, estes números mostram a resiliência das marcas Douro e Porto e, sobretudo, a força que o vinho do Porto conseguiu ter no mercado internacional. Comportou-se de forma excelente quando olhamos para as quebras que registaram outras regiões emblemáticas, como Champagne, Borgonha ou Bordéus. Seguramente que esta percentagem não afeta todos por igual, haverá pequenos operadores, mais focados em canais nacionais, que têm quebras superiores a estas.
Os apoios criados para a covid-19 foram amplamente usados no Douro?
As medidas excecionais implementadas pelo Ministério da Agricultura de apoio ao setor e, especificamente à RDD, ajudaram a diminuir o impacto da crise. Tudo somado, estamos a falar de apoios concretos aos agentes económicos a rondar os nove milhões de euros. Foi muito positivo, porque permitiu que os viticultores não tivessem tido quebras no preço de venda das uvas. E isso é uma medida de sustentabilidade social.
A vindima curta veio ajudar.
Sim, tivemos quebras na produção de cerca de 26% – fizemos quase 229 mil pipas de vinho na Região Demarcada – o que também terá ajudado os viticultores a negociarem melhores preços.
O setor tem pedido um reforço da promoção, o que vai ser feito?
Essa é a área em que temos aumentado mais o nosso orçamento, nos últimos anos. Veja-se a grande campanha promocional que está a acontecer, em televisão e nas redes sociais, entre outros suportes, e que procura dinamizar o consumo, aproximando-o de uma classe mais jovem, sem deixar de privilegiar toda a aproximação aos mercados internacionais.
Quanto vão investir em 2021?
São cerca de 2,5 milhões de euros, o que representa um acréscimo de 20%, e a nossa intenção é fazer ações no top 10 dos principais mercados. Vai ser um plano arrojado e que inclui um projeto novo, a Rota dos Vinhos do Douro e Porto, uma rota mais digital, vocacionada para os tempos modernos, que permitirá que qualquer turista ou cidadão nacional que disponha de umas horas ou uns dias livres possa instalar um aplicativo e automaticamente receberá propostas de destino. O Turismo do Porto e Norte de Portugal tem aqui uma forte competência agregadora, porque, além da RDD estão envolvidas as comissões de viticultura dos Vinhos Verdes, de Trás-os-Montes e de Távora-Varosa.
Apesar de tudo, e tirando a pandemia da equação, o vinho do Porto perdeu mais de 44 milhões de euros em exportações desde o início do milénio. Não são números alarmantes?
2019 tinha sido o ano da inversão. Tínhamos crescido em valor e em quantidade, invertendo uma tendência de quebra em volume que se registava quase ininterruptamente desde 2008. E sem baixar o preço médio. Era ténue, mas havia aqui uma inflexão que podia ser um sinal positivo de que estávamos a retomar.
Não acha, então, que se possa falar de uma crise?
Não, não creio. O que não significa que se encare sem preocupação uma evolução de vendas que atingiu o seu máximo de quase 429 milhões em 2002 e depois desceu até um mínimo, neste século, de 352 milhões em 2009. Mas há aspetos positivos que nos dão confiança de estarmos a percorrer um caminho correto para uma maior valorização do produto, com o aumento sustentado do preço médio de venda do vinho do Porto desde 2010, para o qual tem certamente contribuído o crescimento da quota das categorias especiais. E esse aumento é real, não apenas nominal, desde 2013. E os sinais que vamos tendo, em termos de promoção internacional, são muito positivos. Temos cada vez mais um público jovem a fazer os nossos cursos. As próprias feiras mostram bem a presença que o vinho do Porto tem como imagem internacional. É um ícone e dificilmente haverá outro que venda tão bem a imagem do país.
E os vinhos do Douro?
Têm batido sucessivamente recordes anuais desde 2005, o que contribuiu para um crescimento sustentado do valor total das vendas de vinhos certificados da região, que ultrapassou, pela primeira vez, os 500 milhões de euros em 2015 e ficou acima dos 571 milhões em 2019. O que mostra que a região já não é tão dependente do vinho do Porto como antigamente, assumindo uma diversificação de fontes de rendimento, onde se inclui naturalmente também o enoturismo, essencial para se conseguir manter e atrair população.
A região tem um novo portal e uma nova linguagem, nesta lógica de aproximação ao público mais jovem. Não é algo que o setor tenta fazer há duas ou três décadas?
E tem feito. Hoje temos milhares de seguidores nas redes sociais, muitos deles jovens, o que mostra que estão interessados nos vinhos da região e em conhecer melhor aquilo que fazemos. Remodelamos o nosso site com uma versão em 2021 muito mais alinhada com a dinâmica das redes. Procuramos apostar nesta via digital, não só na investigação, que temos dinamizado muito, mas, também, na promoção.
As alterações climáticas são um problema para o Douro?
É uma preocupação e um desafio. O Douro é uma região muito sui generis, com mais de 100 castas devidamente identificadas e com três sub-regiões com condições edafo-climáticas, de solo e de clima, tão diferentes que diria que já quase experimentamos estas alterações climáticas desde a história ancestral da região. E tendo nós uma diversidade genética tão elevada temos quase que um avanço em relação às outras regiões.
A região prepara-se para ter uma nova designação, “Vinhas Velhas”, porquê?
O objetivo foi criar algum rigor e limitar a utilização abusiva do designativo numa região tão importante como o Douro. E creio que funcionará como exemplo até para as outras regiões. Para usar a menção tradicional “Vinhas Velhas” no rótulo de um DOP Porto ou DOP Douro terão de ser vinhas com mais de 40 anos e que possuam, pelo menos, cinco mil videiras por hectare – com exceção das vinhas com armação do terreno pré-filoxérica – e um mínimo de quatro castas. A sua produção não pode exceder 50% do rendimento máximo por hectare e o vinho tem de ser aprovado com nota de prova mínima compatível para vinho de muito boa qualidade ou nível 2. Isto de forma muito sumária.
Uma das críticas ao vinho do Porto, é que é muito complicado. Não é fácil para o consumidor perceber tantas categorias e designações.
Essa questão tem sido muito debatida no setor. É tudo uma questão de linguagem. Se o vinho do Porto nos for apresentado com a complexidade de todos os estilos e categorias, seguramente pode parecer um mundo complicado. Mas se se começar por definir os principais estilos de vinho do Porto e, à medida que essa aprendizagem inicial for consolidada, se for fazendo, de seguida, as “pós-graduações”, os “mestrados” e os” doutoramentos” em vinho do Porto, há-de chegar uma altura em que a pessoa que achava estes designativos tão complicados, vai perceber que eles existem por algum motivo. Esta complexidade somos, muitas vezes, nós que a criamos porque, em vez de querermos fazer a aprendizagem pela base e depois irmos progredindo à medida que nos formos sentido confortáveis no nível anterior, queremos logo passar para o nível final sem termos passado pelos intermédios. E se me pergunta se o mercado jovem está preparado para isso? Seguramente que está. Temos visto muito público jovem presente nas ações My Port Wine Day que vem precisamente aprender coisas sobre o vinho do Porto. O que é importante é que a linguagem se adapte ao público que temos. Complexo? Claro que é, mas também se pode dizer que por algum motivo o vinho do Porto é, em si mesmo, o garante da nossa imagem internacional. Para um vinho com esta tradição, com este passado, não podia ser uma coisa tão simples assim.
Está a fazer dois anos de mandato. Que balanço faz?
Positivo. Temos vindo a fazer paulatinamente aquilo a que nos comprometemos.
Qual é a marca que gostaria de deixar?
Se no final do mandato conseguíssemos um incremento de valor no pagamento das uvas aos viticultores, julgo que teríamos feito um bom trabalho no sentido de trazer mais valor para a RDD, por forma a que a preservação da sustentabilidade não seja só ambiental e económica, mas, também social. Isso obriga a um trabalho conjunto, não só de uma equipa, de que eu sou o rosto, mas que conta com 118 pessoas – apesar dos quadros terem 151 lugares -, mas, também, de um trabalho em contínuo com os 22 membros do Conselho Interprofissional que representam a produção e o comércio. E sem os quais o presidente do IVDP não consegue, por si só, implementar medidas de caráter político na RDD.
De quanto deveria ser essa valorização para que houvesse uma remuneração justa?
Não consigo arriscar. Os custos de produção variam muito em função da dimensão da área e da vinha ser ou não mecanizada e o preço de venda das uvas varia muito em função de serem ou não para Porto e da sua classificação, no caso de serem. Portanto, uma percentagem de valorização global pode ser suficiente para parte e não para a totalidade. De qualquer forma, só com um conjunto de medidas uniformizadas, se pode manter a viticultura no Douro, de modo a continuar a garantir um tecido social que mantém e atrai mais população, continuando a exportar um produto de excelência.
Há sempre a questão do preço de venda dos vinhos…
Em comparação com os preços de outras denominações de origem europeias, com custos de produção menores, é indubitável que há que promover a valorização dos vinhos da RDD, que permita também pagar mais pelas uvas e dar maior rendimento aos viticultores. O que passa por garantir níveis de qualidade e tipicidade, promovendo a notoriedade dos vinhos, mas, também, por procurar diminuir os custos de produção, apostando na investigação e na inovação.
O viticultor continua a ser o elo mais frágil na cadeia do vinho do Porto?
Creio que sim. O pequeno viticultor será o elo mais frágil no sentido de não poder obter economias de escala, nem tão facilmente diversificar as suas fontes de rendimento. Mas os agentes económicos de maior dimensão, nomeadamente os comerciantes de vinho do Porto, embora tenham vindo a investir na produção própria, dependem ainda muito das compras a esses pequenos viticultores. E a RDD não poderá ser uma região sustentável em termos económicos, sociais e ambientais sem estes viticultores, cabendo à gestão interprofissional da região conseguir manter o equilíbrio entre os seus agentes económicos.
Em que sentido?
O realismo social da região com pequenos viticultores, com o risco de ficarem sem rendimento e a vinha ficar abandonada, exige uma estrutura que garanta a sustentabilidade e a manutenção deste património da Humanidade que pode ficar em causa com o abandono da vinha. Por outro lado, a viticultura de montanha, a reduzida produção por hectare, a diminuta dimensão média das parcelas, a monocultura, deverão constituir critérios de valorização das uvas da RDD. A produção de vinho, Porto e Douro, é o sustento dos produtores e as exportações são a garantia de estabilidade económica e social na região. É essencial dinamizar a produção e o pequeno tecido empresarial existente, até por uma questão de sustentabilidade ambiental no cenário atual das alterações climáticas.
E o dossier Casa do Douro. Como está o processo de avaliação dos vinhos? E as eleições?
O dossier da avaliação não é nosso, foi feito por uma comissão. Não participamos. Quanto às eleições, foram suspensas por causa da pandemia, e a senhora ministra disse que, tão depressa esteja resolvido o problema administrativo da Casa do Douro, elas teriam lugar.
Por problema administrativo entenda-se o pagamento das dívidas?
Dos stocks, sim.
E a questão da inscrição obrigatória?
Está em avaliação no Tribunal Constitucional que, até agora, ainda não emitiu opinião.
E não vai dar a sua, depreendo.
Como cidadão posso sempre ter uma opinião. Mas como presidente do IVDP não é correto pronunciar-me sobre um diploma aprovado na Assembleia e promulgado pelo senhor Presidente da República.
Em termos de desafios, o que preocupa?
Esta questão da articulação. O IVDP, sendo um instituto público, tem uma missão muito concreta de promover a Região Demarcada do Douro, quando, muitas vezes, as pessoas acham que o instituto tem uma ação de controlo, de fiscalização, apenas. E não olhamos ao lado bom que é a imagem que o IVDP goza ao nível internacional na proteção das denominações de origem e ao trabalho incansável do departamento jurídico nesse domínio.
O uso abusivo das denominações de origem ainda é um problema? Em que países?
Claro que é. Não quero falar em nenhum país em especial, mas praticamente todas as semanas temos queixas. E o facto de termos este investimento consagrado no nosso orçamento possibilita-nos atalhar e resolver o problema. Mas isso é possível, também, graças a uma imagem forte que temos, a nível internacional, junto dos organismos em que o IVDP participa e onde estão as elites das elites mundiais do vinho. Muito daquilo que se faz hoje em muitas regiões vitivinícolas é resultado das informações que vêm beber ao IVDP e ao seu passado histórico que importa realçar, destacando o trabalho das pessoas que cá estão todos os dias a fazer esse controlo e a garantir resposta paulatina para que o setor não saia prejudicado por uma competição desleal e fraudulenta.
Dizia que o presidente do IVDP não consegue, por si só, tomar medidas de carácter político na região. Tem alguma em mente?
Seria importante, a curto prazo, extinguir a existência permanente na DOP Porto de 75 000 litros. A última alteração de 150 000 litros para 75 000 litros não prejudicou os objetivos de constituição de reservas de qualidade. Por outro lado, poderia assegurar a curto/médio prazo que jovens enólogos com tradição na produção de vinhos do Douro pudessem trazer vanguarda e inovação na comunicação dos vinhos do Porto.
Isso significa que, a prazo, não seria necessário qualquer stock mínino para ser comerciante de vinho do Porto. Quer dizer que a “Lei do Terço” também deveria acabar?
A “Lei do Terço” tem conferido estabilidade económica ao setor, mas o desenvolvimento da denominação de origem Douro e as exigências de sustentabilidade social na Região Demarcada do Douro exigem a revisitação das suas regras. Os equilíbrios sociais, económicos e qualitativos alcançados por este regime da “Lei do Terço” foram definidos num quadro muito distinto do atual. Será um desafio para toda a região, mas marcado, simultaneamente, por um respeito pelo espírito e pela finalidade do regime.
E o desafio da articulação é com quem?
Com o setor, a produção e o comércio, mas, também, com os responsáveis políticos dos 21 municípios que compõem a Região Demarcada. E eu noto uma vontade muito grande dos senhores presidente de câmara em participarem nesta mudança, porque sabem que este território, sem a capacidade vitivinícola, é mais pobre e que só um tecido económico forte promove o repovoamento.
Imagino que essa articulação não seja fácil quando, havendo um conselho interprofissional, desde que as profissões estejam de acordo, o papel do presidente fica enfraquecida.
Fica, com toda a certeza, porque o presidente tem voto só de desempate. Mas também é importante que os próprios conselheiros percebam qual é a posição do IVDP. É verdade que temos a representação paritária da produção e do comércio, mas o IVDP tem uma representação institucional muito forte em algumas organizações internacionais e, precisamente por participar nelas, temos acesso a informação privilegiada que nos ajuda a rapidamente prever que medidas é que devemos articular dentro do próprio país para que determinado tipo de problemas não venham a acontecer.
Sente que está numa posição ingrata?
Não, senão nunca teria concorrido para o IVDP.
A formalização do brexit sem um acordo preocupava muito o sector. Está satisfeito com o acordo agora anunciado?
Globalmente, e do que conhecemos dos termos do acordo, sim. O entendimento era considerado benéfico para as partes e, relativamente ao tema de maior preocupação do setor, as taxas aduaneiras não terão implicações nas trocas comerciais e na intensidade das exportações e importações entre os dois mercados. Por outro lado, a burocracia ao nível do controlo poderá ser um aspeto a corrigir. Não obstante o IVDP ter assegurado o registo das marcas coletivas Douro e Porto no Reino Unido haverá, em sede do acordo, o reconhecimento dos direitos de produção e comercialização de bens certificados, o que também foi positivo. Relativamente à segunda questão, mais relevante se passará, ou não, o crivo do Parlamento Britânico, é a restituição da confiança nas relações entre a União Europeia e o Reino Unido, que ficou seriamente afetada com o brexit e com tudo o que de negativo lhe esteve associado durante os últimos 4 anos.
O artigo foi publicado originalmente em Dinheiro Vivo.
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