Períodos de seca mais frequentes e prolongados podem colocar em risco a curto prazo o regadio a cerca de 200 mil hectares. “Temos que apertar nos gastos e contar as gotas de água”, avisa presidente da EDIA.
A água, pela sua escassez, é para os alentejanos o seu Santo Graal. No vasto cancioneiro tradicional alentejano há uma canção que se destaca nas vozes de inúmeros cantores e poetas e por ainda ser trauteada sobretudo pelas crianças que a aprendem na escola ou nas vivências com os mais velhos: “Dá-me uma gotinha de água/ Dessa que eu oiço correr/ Entre pedras e pedrinhas/ Entre pedras e pedrinhas/ Alguma gota há-de haver.”
A realização do sonho materializado por Alqueva veio alimentar um novo imaginário, o da água em abundância. Mais ainda não passaram duas décadas desde o encerramento das comportas da barragem e já se ouvem de novo os apelos à poupança. A água volta a ser pouca.
Ao PÚBLICO, Pedro Salema, presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), que gere o vasto manancial de 620 milhões de metros cúbicos de água da grande albufeira, apela desde já a um acto que é para si imperativo: “Temos que apertar nos gastos e contar as gotas de água”, diz, uma vez que existe a “ilusão de que temos em mãos um recurso infinito, quando não é verdade”.
Mas será que há água suficiente para toda a área prevista de regadio sustentado a partir do Alqueva? Salema procura tranquilizar os mais catastrofistas. “O que mostram as nossas projecções é que é suficiente, em ano médio, para atender a todos os pedidos”, incluindo os caudais que vão ser necessários para irrigar mais 48 mil hectares da 2.ª fase do Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva (EFMA). Deixa, no entanto, uma ressalva: “Estamos a fazer uma interpretação com base nos recursos que temos hoje e não nos que podemos vir a ter.”
Mais 48 mil hectares para rega
Francisco Gomes da Silva, antigo secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural no primeiro governo de Passos Coelho, admitiu em documento escrito enviado ao PÚBLICO que a região do Alqueva poderá estar perante “um cenário de potencial ‘insuficiência’ de água para satisfazer a procura que irá ocorrer dentro de três a quatro anos”. A insuficiência a que se refere “não decorre da eventual escassez associada ao volume de água armazenado nas barragens e reservatórios do sistema hidráulico do EFMA”. O problema está sim, acentua, no “volume associado ao Título de Utilização de Recursos Hídricos (TURH) para regadio e à procura projectada”, ou seja, os 48 mil hectares de novos blocos de rega que estão a ser instalados no Alentejo Central, Baixo Alentejo e Litoral Alentejano.
Por outras palavras, trata-se de aumentar o débito captado em Alqueva, num contexto em que o regadio vai ter um acréscimo de 48.000 hectares de novos blocos de rega que já começaram a ser instalados no Alentejo Central e Baixo Alentejo, a juntar às áreas que estão a ser actualmente irrigadas: os 120 mil hectares da 1.ª fase do EFMA e os cerca de 20.000 hectares atribuídos a agricultores com estatuto de precários que, ao longo dos últimos anos, se foram instalando, à revelia de qualquer plano de ordenamento, na periferia dos blocos de rega do Alqueva.
Gomes da Silva acrescenta mais parcelas nas contas do consumo: “Para além de ter de se assegurar o fornecimento de água às áreas atrás referidas (num total de 188.000 hectares)”, terá de se garantir o fornecimento “a alguns dos perímetros de rega confinantes” de Odivelas e do Roxo, a que acrescem ainda os caudais de outros perímetros que irão igualmente necessitar de reforço (Vigia, Campilhas e Vale do Sado). Nas suas contas, o volume de caudais que será necessário canalizar para os perímetros confinantes (fora de Alqueva) pode chegar a um total de “100 milhões de metros cúbicos/ano”, deixando “disponível para rega no EFMA 490 milhões de metros cúbicos/ano”, admite.
Perante o quadro apresentado, Gomes da Silva sugere que “deveria ponderar-se de forma cautelosa a ‘velocidade’ de implementação da 2.ª fase do EFMA” e, consequentemente, a “revisão do ritmo de crescimento da área regada nos próximos anos”. A negociação do aumento do volume de água associado ao TURH é outra das posições defendidas pelo ex-secretário de Estado, que propõe ainda o “aumento da capacidade de armazenamento das afluências ao sistema hidráulico do EFMA”, uma hipótese que “a EDIA está a trabalhar”, diz Gomes da Silva.
Reagindo às propostas e sugestões apresentadas, Pedro Salema compreende que “a primeira tentação que surge num cenário de escassez de água é a de que podemos aumentar a concessão” e, em vez dos 620 milhões, “podermos retirar 700 ou 800 milhões de metros cúbicos da albufeira do Alqueva. “Se o fizermos colocamos em causa a garantia de água no futuro imediato, porque a natureza não vai reagir ao que nós escrevemos no papel”, adverte o presidente da EDIA.
Salema acredita que o período de seca que estamos a viver “é apenas um ciclo a que se seguirá outro com mais afluências”. Mas há um facto que é incontornável: a água é um bem limitado e finito que “obriga a preservá-la gota a gota” e o acesso ao seu uso para rega “é um direito flexível”, realça. Reportando-se à situação actual, Salema considera que o sistema que abastece os blocos de rega “está a funcionar como é suposto funcionar e de forma exemplar”, lembrando que o EFMA foi projectado e construído “para regular os excessos e a escassez” dos caudais do Guadiana.
Prevenir o futuro
A eventual escassez de recursos hídricos na região do Alqueva é também motivo de forte preocupação para José Paulo Martins, investigador e membro da organização ambientalista Zero. “A questão da falta de água ainda não se coloca no momento”, referiu ao PÚBLICO, mas a realidade que observa quando percorre os campos regados do Sul do país mostra-lhe a necessidade de “prevenir o futuro” e actuar já com base em cenários de médio/longo prazo.
Num estudo recentemente apresentado pela Universidade de Aveiro “está prevista uma redução de 10% nos recursos hídricos no território do litoral e de 30% no interior, dentro de 30 anos”. “É uma quebra brutal”, assinala o membro da Zero, criticando o “exagero” que se tem verificado na plantação de culturas permanentes, sobretudo olival e amendoal, “mais gastadoras de recursos hídricos”. E lembra que os caudais do Guadiana em território nacional “estão muito dependente dos débitos vindos de Espanha, quando se sabe que os escoamentos naturais estão a sofrer uma redução” na bacia do rio ibérico.
Do outro lado da fronteira “estão piores que nós e consomem muito mais água que nós”, observa José Paulo Martins, que diz recear o aparecimento de comportamentos extremos, como já observou no Alentejo há duas décadas e meia. Nessa altura, recorda, “estivemos à beira de uma guerra de água” nos locais onde se acentuou a seca extrema, situação que, no tempo presente, “não deixa de ser uma possibilidade”.
Em tempos de escassez de água “ninguém vai deixar morrer as árvores” e o “desespero” de quem as plantou levará “à abertura de furos ou de outras soluções mais drásticas”, como explicou ao PÚBLICO João Banza, agricultor em Aljustrel: “Há 15 anos, andei a cavar o fundo de um ribeiro seco para ter alguma água.” Nessa altura, nos blocos de rega do Roxo e de Odivelas, foi necessário o rateio de água porque não chegava para todos. “É uma loucura suportar o regadio em tais condições”, realça o agricultor.
O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao Ministério da Agricultura, que remeteu todas as explicações para uma conferência de imprensa marcada para 28 de Novembro na sede da EDIA, em Beja.