Com a pandemia, pouca coisa mudou nas vindimas. O trabalho a céu aberto é mais seguro e na Sociedade de Vinhos Borges houve até mais oferta de mão-de-obra, num ano em que os números do desemprego aumentaram.
Um céu acidulado ameaça chuva. As nuvens não pesam, acima das cabeças de três vultos que riem, porque liberdade é a leveza de cumprir obrigações sem custo. “Gosto, gosto disto, porque é ao ar livre, anda-se bem. Eu acho que é melhor aqui do que estar numa fábrica fechada.” No dia 17 de julho, Maria de Fátima Teixeira fez 20 anos de vindimas. “Quando não chove, apanhamos sol.” Parece simples o engenho, dito entre uma aragem de risos que a máscara não abafa.
As uvas bailam-lhe nas mãos acariciadas com generosidade pelo tempo, e até as tesouradas metálicas soam a música. Do fundo, os sons de um galo e de um cão que ladra não vêm interromper o verde tão verde, mas fundir-se com ele. Como Maria de Fátima Teixeira se concilia com a terra, num verbo feito só de constância. Nem a pandemia transformou a conjugação regular. “É igual. Andamos aqui todos juntos. Não é? É a mesma coisa. A gente tem sempre um bocadinho de receio, mas eu acho que é a mesma coisa. É só andar menos com o povo. Havia de andar mais, não é? Para ser mais alegre, para ser mais bonito.” Ri, ri muito: “Hoje o Zezinho vai ouvir-me na rádio.”
João Araújo, de 56 anos, trabalha na Sociedade de Vinhos Borges, na Macieira da Lixa, há pelo menos quatro. Garante que, se o ouvissem cantar, “vinham” buscá-lo, e que, em tempos, era muito requisitado. Entre patamares verdes, escuta-se a voz de cera quente, liquefeita, em versos dedicados a “Madalena”, um “amor” cantado. “É com os meus botões, mas gostava bem de cantar. Não estorva ninguém.” Maria Alice Pereira, de 65 anos, não acompanha. “Não, não canto. Eu também não sou muito alegre. Morreu o meu falecido homem, a minha mãe… Não sou daquelas. Lembro-me muito deles, por isso não canto.”
O tempo impôs notas mais graves, mas “está tudo bem”, garante a funcionária. É mais o trabalho na terra do que o canto que espanta os males e os maus pensamentos.”Fazemos companhia uns aos outros, falamos, rimos. Isto vai andando, isto vai passar, eu acho que sim. O povo tem medo, mas acho que isto vai passar.”
Maria de Fátima Teixeira, João Araújo e Maria Alice Pereira estão de frente para três caixas por encher, distanciadas por determinações que lhes escapam. O vírus figura das conversas, mas há que fazer a poda aos medos inúteis. “A gente tem de andar ao ar livre”, diz, cortante, Maria Alice Pereira, que todos os dias vai a pé para o trabalho. “Ando na rua e nada me incomoda. Temos só de ter um bocadinho de cuidado porque não somos todos iguais.”
O convívio, admitem, é diferente. “Ah, sim, não se vê grande coisa disso. Hoje em dia não se vê, isso é verdade. E eu sou um desses, também fujo. Enquanto andar isto no ar, não é?” João Araújo emudece mal Maria de Fátima Teixeira principia a falar. “Ai não… Temos de ter todo o cuidado, e todo o cuidado é pouco. Numa mesa grande da cantina, comíamos todos, agora comemos três.” Conversam, aprendem o oportuno dos silêncios e a urgência da espera, um ritmo que imita os tempos naturais. “Uma coisa é colher, outra é plantar. Colheita é receber. Plantio é dar.” O poema brasileiro plasma como a terra é grávida de ensinamentos e esperança. “Não faça com que a pressa de colher estrague o seu momento de plantar.”
Também a pandemia exige paciência. João Araújo sabe que nem uma vindima que lhe parece o mundo todo o aliena. “Vemos nas televisões, mas temos de ir em frente. A agricultura não perde. A uva não espera, é para colher ou para deitar fora.”
Hoje, a máscara já não lhe faz “grande diferença”, mas foi dos que mais temeu o advento de março de 2020, antítese de primavera da vida: “Quando isto veio, eu fui dos homens que falou com o meu chefe e, durante dois meses, fui almoçar a casa. Pegava no carro e deslocava-me para almoçar, com medo. Depois vi que não podia ser assim, que não tinha lucro nenhum e tinha de arriscar. Pedi a Deus para me ajudar e continuei.” Continuaram os três, mais do que sombras debaixo de fortes raios de sol, porque sabem, ainda que não conheçam Neruda, que é possível “cortar todas as flores”, mas não “impedir a primavera”.
Pedro Martins, engenheiro agrónomo da Sociedade de Vinhos Borges, sustenta que não há forma de fugir ao trabalho na terra. “Os funcionários da vinha não podiam ir para casa. É uma planta que não para de desenvolver, e a manutenção da vinha não podia ser feita em casa, temos de ter pessoas. Ou abandonávamos, íamos todos para casa e perdíamos a produção do ano – isso era um prejuízo ainda maior para a empresa do que aquele que já há – ou mantínhamo-nos a trabalhar.”
A Quinta do Ôro e de Simaens, uma soma de 56 hectares na Lixa, em Felgueiras, adaptaram-se com especial robustez às novas contingências.”Temos a vinha praticamente toda mecanizável e vindimável com máquina. Temos menos pessoas na vindima e isso tira-nos muitas preocupações”, explica. O aumento do desemprego mitigou a falta de recursos humanos com que todos os anos a vindima se deparava, quer na Lixa, quer na região do rio Dão, salienta Pedro Martins. “Sentimos mais disponibilidade de mão-de-obra. Houve muito mais gente disponível para trabalhar. Fomos aceitando inscrições no Dão, nunca tivemos uma equipa tão grande.”
Maria de Fátima Teixeira não vê o assunto da mesma forma. “O pessoal não quer trabalho duro. Se fosse outro tipo de trabalho, não faltava quem viesse, mas o duro ninguém procura. Eles estão a ganhar em casa, não vêm para aqui consumir-se.” Maria Alice Pereira junta-se em coro. “Estão no fundo de desemprego, enquanto o Governo pode. Quando o Governo não puder, olhe, vai tudo ao ar. O povo não gosta de apanhar chuva nem frio.” As duas gostam mais do sol do que da chuva, mas apreciam com muita intensidade tudo quanto colora a vastidão dos campos e o som dos pássaros a abrir as brechas do céu num voo de liberdade.
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