De passagem por Portugal para participar na Conferência dos Oceanos, cimeira das Nações Unidas que decorreu esta semana em Lisboa, Maria Helena Semedo assinala, em entrevista à RTP, os valores “recorde” na produção de recursos pesqueiros, no valor de 214 milhões de toneladas.
Desta produção, a aquacultura “representa cada vez mais uma parte importante nesses recursos”: em concreto, 121 milhões de toneladas de recursos são de aquacultura.
Por outro lado, há um aumento do consumo de pescado per capita. Se em 1960 o consumo de pescado por pessoa era de seis quilos, atualmente o valor atinge “mais de 21 quilos de pescado per capita”.
Os dados mostram, desta forma, que o setor terá um papel cada vez mais relevante para a alimentação, nutrição e subsistência a nível mundial. “Vemos que a pesca e o consumo de recursos marítimos podem ocupar um espaço na melhoria do consumo de proteínas animais”, indica a responsável.
Num mundo de crescente insegurança alimentar, o setor vive um momento “dinâmico” após as ondas de choque provocadas pelas restrições associadas à Covid-19, assumindo um papel “muito importante na segurança alimentar, na criação de riqueza”, destaca Maria Helena Semedo
No entanto, também o setor da pesca e da aquacultura necessita de “limites” para assegurar a sustentabilidade. No caso da aquacultura, que tem cada vez mais peso no total do consumo de pescado, é importante garantir que adote práticas “amigas do ambiente” e que continue a contribuir para a criação de riqueza.
Para a responsável, a inovação e as “soluções mais baratas e adaptadas” desempenham um papel fundamental para a manutenção dos mangroves, tendo em conta o valor muitas vezes elevado dos inputs, ou seja, dos alimentos ligados à criação do pescado.
Outro dos principais focos do relatório é a pesca ilegal. “Das nossas pescarias, cerca de 35 por cento não é declarada. Não tendo as informações, poderemos ter uma situação de sobrepesca”, alerta a diretora-adjunta da FAO, organização das Nações Unidas com sede em Roma.
Neste ponto, a FAO dedica-se a garantir a implementação “do quadro legislativo existente”, nomeadamente do Acordo de Medidas do Estado do Porto (PSMA), em vigor desde 2016, e a troca de informações entre países.
Depois da pandemia
Num contexto de crise global de alimentação, o setor das pescas e da aquacultura dá alguns sinais de recuperação. No auge da pandemia, com as medidas de confinamento, o impacto verificou-se tanto do lado da oferta como da procura. Se, por um lado, os pescadores não eram autorizados a embarcar e viam-se limitados pelas medidas de fecho de fronteiras, o consumo – sobretudo na restauração – também caiu a pique.
“Muito do pescado que se vende, além do consumo doméstico, é nos restaurantes. E os restaurantes têm toda a dinâmica do turismo, que foi completamente abalada com a Covid-19. Não havia turistas, as pessoas não podiam viajar, e os nacionais também não podiam sair para ir aos restaurantes”, destaca a diretora-adjunta da FAO.
Estas dificuldades acabaram por afetar as populações costeiras a nível mundial, incluindo “muitas mulheres que vivem do comércio de pescado e que trabalham para alimentar as famílias”.
No entanto, com o fim das restrições, o setor está de novo “numa fase dinâmica”, também à boleia do turismo, que começa a regressar aos números de 2019. “Penso que os próximos anos, se tudo correr normalmente, serão anos muito bons para o setor e poderão compensar o que aconteceu”, afirma Maria Helena Semedo.
Consumo de pescado vai continuar a crescer
Questionada sobre os progressos alcançados nesta conferência dos Oceanos, a diretora-adjunta da organização para a Alimentação e Agricultura destaca os “novos financiamentos e soluções” que têm surgido no sentido de combater a poluição dos oceanos, o aumento da emissão de gases com efeito de estufa e ainda gerir o aumento da pescaria.
Isto porque se trata de um setor que necessita de “mais financiamento e inovação”, em linha com o Objetivo 14 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável.
“Em certos países temos frotas que são muito grandes, utilizam muita energia, são mais poluentes”, destaca a responsável. Por outro lado, também é necessário falar sobre a questão da produção de energia através do mar, energias renováveis e “menos poluentes”.
Maria Helena Semedo refere, no entanto, que estes momentos de “promessa, união e solidariedade” se reflitam em medidas e políticas concretas.
Enquanto organização, um dos grandes objetivos da FAO era alertar não só para a importância das pescas e da aquacultura para a segurança alimentar global, mas também para o previsível aumento do consumo e produção de produtos marítimos até 2030, um acréscimo na ordem dos 30 por cento. “Isso tem de ser feito de forma responsável por todos”, vinca.
“Quando há aumento da procura, se não há aumento da oferta, há aumento dos preços. Se houver um aumento de preços, são os mais vulneráveis, os que mais precisam, que não poderão ter acesso a esses recursos”, acrescenta a responsável da FAO.
Pesca local, uma resposta à crise alimentar
No ano em que se assinala a importância da pesca de pequena escala (Small Scale Fisheries Year), Maria Helena Semedo enfatiza a importância dos pequenos pescadores.
“Muitas vezes o consumo do pescado vem do comércio internacional. Se vem do comércio internacional está limitado aos efeitos da oferta e da procura. Se houver uma produção mais local, se as comunidades podem pescar e comer aquilo que pescam, já estão menos dependentes dos mecanismos internacionais”, assinala.
Assim, a FAO procura “chamar à atenção para a importância dos pequenos pescadores”, para que também eles possam ter acesso a financiamento, conhecimento e investimento. No fundo, que também façam parte de todo o processo decisório. “Às vezes são os mais marginalizados, mas são os mais afetados”, refere Maria Helena Semedo.
“É preciso que haja um governo global do setor dos oceanos e das pescas e que também eles possam estar à mesa das negociações e possam ser ouvidos”, algo que nem sempre é possível garantir em eventos de grande envergadura como o que decorreu esta semana em Lisboa, assume a responsável da FAO.
CPLP combate a pesca ilegal
“Em termos da superfície mundial, [os países da CPLP] representam 1,6 por cento. Mas em superfície marítima representam quase 4 por cento”, destaca Maria Helena Semedo. Dados que mostram a importância da comunidade de países de língua portuguesa. “Quase todos ou são ilhas, ou são países ribeirinhos”, lembra.
“O acordo que foi assinado ontem [quarta-feira], que teve o apoio da FAO na sua negociação, visa que quando houver pesca ilegal num país, que seja denunciada e que possa haver troca de informações. Isso permite que se tenha uma ideia da gestão desses recursos e que se possa combater conjuntamente a pesca ilegal”, explica a diretora-adjunta da FAO.
“O que vai ser importante agora é implementar esse acordo. Quais são as medidas para a sua regulamentação, como é que os países vão fazer a troca de informações, mas isso é algo que os países se comprometeram a fazer e que a FAO, como organização que suportou esse acordo e a CPLP, vai ajudar na sua implementação”, acrescenta nesta entrevista à RTP.
O papel dos pequenos países
Questionada sobre o papel de Portugal na proteção e exploração sustentável dos recursos marítimos, Maria Helena Semedo destaca a “grande tradição” que liga o país ao mar, mas também a capacidade para “estabelecer pontes entre países”.
“Talvez por ser um país pequeno, nesse jogo de interesses, consegue ter um papel mais neutro e um papel de facilitador. Acho que o facto de esta conferência ter sido em Portugal vai permitir ao país durante dois anos ter essa voz (…) e pedir aos países que sejam mais responsáveis na gestão dos recursos”, refere a diretora-adjunta da FAO.
No entanto, destaca que Portugal é um país onde o consumo de pescado per capita é “elevado” e que o país deve procurar aprimorar uma gestão sustentável dos recursos.
“Não digo que esteja a atingir os seus limites, mas há necessidade de medidas que reforcem a gestão desses recursos. Penso que a conferência ter tido lugar aqui vai permitir o reforço da consciência de Portugal e dos portugueses na necessidade de uma melhor gestão dos recursos para que sejam mais responsáveis. (…) Se destruirmos hoje, os nossos filhos não vão ter a oportunidade que nós tivemos, de nos deliciarmos com um bom pescado”, sublinha.
Portugal, tal como outros países, deve procurar “mais inovação para que se possa aumentar a produtividade e eficiência quando se pesca e quando se transforma”.
O mesmo acontece com países como Cabo Verde, um país pequeno mas que, pela sua condição insular, tem maior dependência dos recursos marítimos e que está mais exposto à subida do nível da água por força das alterações climáticas.
“O que é preciso, e acho que aconteceu nesta cimeira, é que os pequenos estados insulares se unam e que tenham uma voz. (…) Se repararmos, são mais de 50 Estados com problemas comuns: a vulnerabilidade, a dependência alimentar”, destaca.
São países “que não produzem alimentos suficientes para se alimentarem” e que, apesar da grande extensão marítima, têm “uma superfície terrestre muito pequena”. Para além da dependência alimentar, dependem também do turismo, que está muitas vezes ligado ao próprio mar.
“Cabo Verde tem tido um papel muito importante nesta dinâmica. Não só falar dos nossos problemas – nossos porque também sou cabo-verdiana e assumo-me como parte desse grupo, como filha do mar, – e é preciso ter essa voz e que essa voz seja ouvida cada vez mais na arena internacional”, afirma a diretora-adjunta da FAO.