A nossa essência é de água. Plantas, animais, quaisquer seres vivos, somos feitos de água. E com tudo o que interage com a água: molécula com ligações covalentes, a água é um dipolo permanente, diria o meu saudoso Professor Dias Correia, querendo dizer que o oxigénio, por um lado, e o hidrogénio pelos outros, se ocupavam de lhe conseguir todas as amizades atómicas capazes de lhe conferir características únicas, essenciais ao mundo orgânico e à vida. Como todas as coisas essenciais, notam-se mais quando fazem falta ou estão em demasia, do que quando estão em equilíbrio.
Talvez que 2023 tenha sido o ano em que a água foi mais discutida. Do ponto de vista cultural, social e político. Raros terão sido os dias (se é que houve algum) em que nos jornais, nos telejornais e nas redes terá estado ausente e, na maioria dos casos, esteve presente, ou porque faltava nas albufeiras e nas torneiras, ou porque esteve em excesso em inundações e calamidades. Imensa gente falou sobre água ou sobre a seca – e imensa gente demonstrou uma calamitosa ignorância sobre ambas as coisas!
Apesar de tão falada, discutida, argumentada e apontada como desígnio, a água tem um problema grave que urge resolver: muitos dos que a discutem e usam como tema de conveniência e da moda, nada ou quase nada sabem sobre ela. Há uma grande falta de cultura da água quer na população em geral quer na gente política em especial. Desde os conceitos básicos, o de se saber o que é a H2O, as características de incolora, inodora e insípida, o da “capacidade de remover o sabão”, o das medidas de volume e capacidade (1 cm3 = 1 ml; 1 m3 = 1000 litros), da correspondência dos milímetros de precipitação (1 mm = 1 l/m2), o de caudal por segundo, etc. etc. Confrangedor ver confundir, em discussões que implicam tomadas de decisão, as barragens com albufeiras, charcas com lagos, bombagem com pressão obtida por gravidade, trasvases com transporte por condutas ou canais dum mesmo sistema numa mesma rede hidrográfica. Dá para duvidar que quem tanto escreve e fala sobre assuntos aquáticos saiba mesmo o que é um rio, um lago, o ciclo hidrológico com todas as suas variantes. Muito menos se demonstra saber sobre a história da água, quer na sua ocorrência na Natureza, os ciclos de gelo e degelo e as anomalias verificadas ao longo da história do nosso planeta no ciclo hidrológico e no clima, quer na sua utilização pelo Homem, passiva ou activa, religiosa ou profana, como nutriente, como fonte de energia, como elemento de política internacional.
Imprescindível do ponto de vista ecológico e civilizacional, a água é desde a Antiguidade o elemento entre o ar e a terra (e sob ela) com a capacidade de apaziguar o fogo. Misteriosa na sua origem e nalgumas das suas ocorrências (quer fora quer no interior do nosso planeta), as suas propriedades bioquímicas fazem-na presente nas bactérias e fungos, nas plantas, nos animais, no íntimo de nós próprios. Sem água não há vida. E sem água de qualidade não há vida humana. Porque se nós, humanos, estamos integrados nos grandes ciclos da vida e carecemos de utilizar alimentos em conformidade, temos o conhecimento de conseguirmos produzir estes alimentos usando a mesma água. Este conhecimento e prática chama-se agricultura e é o mais nobre uso da água que existe. Entre conseguir produzir milho ou batatas ou leite ou couves com utilização agrícola da água e usá-la para lavar carros, lixiviar inertes e separar minerais, tomar duche, arrefecer ruas e esplanadas, misturá-la com pigmentos para pintar, metê-la em radiadores para arrefecer motores, …, o uso agrícola é de longe o mais consentâneo com o Bem-Comum.
A separação física e cultural, entre a sociedade urbana das cidades e suas periferias e o mundo rural, veio trazer um desconhecimento abissal sobre o uso da água no campo e a sua racionalidade actual. Mais. Veio trazer para a opinião pública, a perspectiva daqueles saudosistas da vida ancestral dos campos que há mais duma geração não cava uma horta e que desse trabalho conserva uma imagem da geração dos seus pais e avós, distorcida por um bucolismo que não existe – nem nunca existiu! A coincidência temporal entre este afastar de gerações do espaço rural e a discussão internacional de temas relacionados com a evolução climática e a sua agenda política, veio embeber o campo científico destas questões convergentes e retirar serenidade a um assunto importantíssimo que é o da essência da água. Porque a água é essencial para todos nós, quer façamos dela um uso agrícola quer lúdico ou outro.
O ano de 2024 vai ser de continuidade de discussão da água. Deveríamos fazer com que a nossa cultura e conhecimento objectivos sobre ela se sobrepusessem à argumentação meramente sonora, mas tantas vezes vazia, sobre si. A água não é um bem escasso, mas está muito mal administrada e a sua escassez (quer a real quer a aparente) vêm daqui, das más decisões. E do clima, claro. Não há futuro sem água, tal como não há agricultura sem água, nem bom nível de vida sem as duas. Em sustentabilidade. E a maneira de começarmos a fazer um uso sustentável da água é aumentarmos o nosso conhecimento e darmos valor à sua essência.
Desejo a todos um muito bom 2024!
Consultor e escritor, ex Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, 2011-2018; ex Vice-Presidente do IVV, 2019-2021