Hoje de manhã. Adega a ser arrumada, máquina de pressão a fazer sair manchas do chão, sanitizer a ser aplicado, cheiro bom a mosto. A vindima no campo acabou, a sabedoria nos lagares e cubas começou. Manobras de trasfega na gestão das capacidades e distribuição dos lotes pelo vasilhame, conforme os objectivos. O Delfim e o David ajustavam as quantidades. Esvaziada de vinho, no fim duma pequena cuba que tinha de ceder o espaço para o mosto deste ano, uns litros de borras do estágio de meses dum tinto que foi para a sua última fase antes de engarrafamento. As borras iriam para o lixo, para os efluentes a tratar. Fiquei com elas e trouxe-as para casa num garrafão dos de Água do Luso. Filtrei-as para decanters, com simples filtros de café: o melhor tinto de Trás-os-Montes provado cá em casa neste Verão! Um field-blend de tourigas, alfrocheiro, tintas roriz e amarela. Só que este field-blend, que poderia ser obtido em qualquer parte no que diz respeito às castas, em mais sítio nenhum seria possível no que diz respeito ao terroir, ao climat, ao local excepcional desta vinha de Portugal: na zona das Fragas do Rio Sabor, Talhas, Macedo de Cavaleiros.
A CVR de Trás-os-Montes está num momento charneira da sua existência. Amigo, como sou, da direcção cessante, conhecedor que sou dos diferentes vinhos de Trás-os-Montes, e amigo, como espero ser, da direcção que se seguirá, permita-se-me escrever duas linhas a seu respeito e dá-las a ler sobre este importante assunto.
A grande oportunidade dos vinhos em Portugal, hoje, é para os vinhos de Trás-os-Montes. É a região que mais pode crescer, é a região que mais tem a lucrar com dar-se a conhecer, é a que maior potencial tem para encarar o futuro do sector. Os seus associados têm uma palavra importante a dizer, evidentemente, mas há algumas linhas mestras, entre outras, que podem e devem ser gizadas num momento como este.
Uma nova visão para a Região. Há que definir sub-regiões, algumas delas incompreensivelmente não definidas ainda: a das Arribas do Douro, com a sua dinâmica própria e os espanhóis do lado de lá a aguardar um movimento de sinergia; a das Fragas ou Fraguedos do Sabor, a definir no mapa mas uma realidade de facto pelos vinhos que produz com uma qualidade muito acima da média e com um carácter distintivo; a das Arcas e Agrochão, já legível nos trabalhos do Visconde de Vila Maior… no século XIX! – tal como a das Arribas do Douro, que várias páginas ocuparam a este autor e outros autores e em diversas obras; e outras, como a que corresponde aos gneisses de Valpaços e Mirandela, ou a dos vinhos de altitude, uma realidade que hoje é de considerar, tal como a das micro-subregiões encravadas nos Vales da Oura e outros, ou daqueles que historicamente se têm afirmado como vinhos-bandeira das marcas produzidas em Trás-os-Montes. Os caracteres correspondentes às vinhas e aos vinhos justificam plenamente esta revisão geográfica, aliás, sustentados por estudos que têm sido produzidos pela investigação superior, muitos deles já divulgados em reuniões científicas em diversos fóruns.
Um novo conceito de marketing para a Região. Privilegiando as visitas inversas, convidando quem nos visite, nacional e internacionalmente, há que abrir o leque dos conhecedores dos nossos vinhos e dos seus promotores junto dos mercados. Com audácia e inovação. Falando também para o grande público dos novos consumidores, atraindo o grande público dos potenciais novos consumidores. O lamento de que o vinho se vende cada vez menos ou de que o consumo seja cada vez menor não nos leva a lado nenhum: uma atitude de resignação é incompreensível! O que se precisa é dum novo marketing nos actuais e nos novos mercados; novo marketing para os actuais e os novos consumidores; novos mercados onde se possa exercer o novo marketing e captar mais novos consumidores. Pode parecer tudo a mesma coisa mas não é: a abertura a novas perspectivas é a primeira atitude para o sucesso duma nova estratégia de marketing.
Um melhor relacionamento com os vizinhos espanhóis. A permanente ameaça, de termos ao nosso lado um oceano de vinho que nos inunda e estraga o negócio, deve ser convertida na oportunidade de melhor conhecermos quem é mais forte do que nós e sabermo-nos relacionar numa plataforma de amizade negocial e sinergia negocial. A concorrência ou um comportamento de que a cada um nos basta “tratar da nossa vidinha”, isoladamente, é a melhor receita para o desastre. A panela de ferro e a panela de barro. Um melhor relacionamento com Espanha só pode resultar em benefício.
Compreensão de que nos assuntos interprofissionais não basta haver uma maioria da parte da produção e do comércio: é necessário que haja, para o sucesso, uma maioria de razão! E a razão manda que se tenham os pés assentes no chão – e a cabeça na iniciativa e nos objectivos! Sem acomodações nem tibiezas.
Desejo o melhor dos futuros à CVR de Trás-os-Montes. Aos vinhos não preciso de desejar o melhor dos futuros porque, com a qualidade que têm cada vez mais, o passado de que se podem orgulhar e a modernização e nível científico que têm adquirido, esse melhor dos futuros será imparável, e sê-lo-á independentemente dos meus desejos – o que só é bom e gosto de saber!
Saúde!
Consultor e escritor, ex Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, 2011-2018; ex Vice-Presidente do IVV, 2019-2021