Lemos e ouvimos por aí, expressões como esta: carne de origem vegetal.
Na matriz da nossa cultura, onde a gastronomia é um reflexo da alma portuguesa, o termo “carne de origem vegetal” emerge como uma dissonância. Longe de ser uma mera questão semântica, a utilização desta expressão desafia a essência do que a carne representa — não apenas um alimento, mas um símbolo de identidade e excelência portuguesa.
Importa assim decompor este termo e perceber a razão pela qual não faz sentido utilizá-lo, tendo em a conta os seguintes pressupostos, nomeadamente:
A Incoerência do Termo “Carne de Origem Vegetal”
A carne, por definição científica e legal, é o tecido muscular de origem animal, caracterizado por uma composição nutricional única que inclui proteínas completas (contendo todos os nove aminoácidos essenciais), vitamina B12, ferro heme, zinco biodisponível e creatina (Bender, 1992; Williams, 2007).
Produtos à base de plantas, ainda que processados para imitar a textura ou sabor da carne, não possuem estas propriedades intrínsecas. A rotulagem de produtos vegetais como “carne” é, portanto, enganadora, confundindo os consumidores e desvalorizando o trabalho dos produtores portugueses.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE, 2024), o setor da carne representa 25% da produção agrícola nacional, contribuindo com €350 milhões em exportações e sustentando comunidades rurais em regiões como o Alentejo, Trás-os-Montes e a Beira Interior.
Um estudo conduzido pela Universidade de Purdue (2020) revelou que 25% dos consumidores associam o termo “carne vegetal” a produtos que contêm componentes animais, evidenciando a confusão gerada por esta terminologia (Lusk & McCluskey, 2020). Esta desinformação não só compromete a confiança do consumidor, como também ameaça a competitividade de um setor que emprega milhares de portugueses e enfrenta os desafios de um mercado globalizado.
Assimetria Regulatória: Um Obstáculo à Equidade
A legislação europeia, nomeadamente o Regulamento (UE) nº 1169/2011, impõe requisitos rigorosos para a rotulagem de produtos cárneos, classificando-os como “preparado de carne” ou “produto à base de carne” quando contêm aditivos, com o objetivo de assegurar clareza e proteção ao consumidor. No entanto, os substitutos vegetais beneficiam de uma flexibilidade regulatória que cria uma concorrência desleal. Esta assimetria permite que grandes marcas globais promovam produtos vegetais como alternativas diretas à carne, capitalizando a sua imagem sem cumprir os mesmos padrões de transparência. Um estudo da Universidade de Purdue (2020) indica que 25% dos consumidores associam “carne vegetal” a componentes animais, abalando a confiança do público e demonstrando que a desinformação tem sido perpetuada pela falta de rigor legislativo.
O setor lácteo oferece um precedente claro, no Regulamento (UE) nº 1308/2013, Anexo I, define que:
“‘Leite’ significa a secreção mamária normal de animais leiteiros obtida por uma ou mais ordenhas, sem qualquer adição ou subtração.”
O Regulamento (UE) nº 1308/2013 proíbe termos como “leite” ou “queijo” para produtos vegetais, o que protegeu o setor lácteo de concorrência desleal. Esta definição protege os produtores de leite, impedindo que bebidas vegetais, como as de soja ou aveia, sejam rotuladas como “leite” (Comissão Europeia, 2013).
Um estudo da Euromonitor (2023) mostra que essa clareza regulatória ajudou a manter a confiança do consumidor em produtos lácteos tradicionais, mesmo com o crescimento de alternativas vegetais. O setor da carne poderia se inspirar nesse modelo exigindo que produtos vegetais usem termos como “produto baseado em plantas”.
Existindo já uma proposta do parlamento e do conselho europeu que infere o seguinte:
“ (…) Designações de carne e produtos cárneos
1. “Carne” significa exclusivamente as partes comestíveis de um animal.
2. Para os fins desta Parte, “produtos cárneos” significa produtos derivados exclusivamente de carne, entendendo-se que substâncias necessárias à sua fabricação podem ser adicionadas, desde que essas substâncias não sejam utilizadas com a finalidade de substituir, no todo ou em parte, qualquer constituinte da carne. (…)”
Inspirados por este modelo, países como a França, através do Decreto nº 2022-947, e estados norte-americanos, como Missouri (Missouri Revised Statutes, § 265.494) e Arkansas (Act 501, 2019), implementaram restrições ao uso do termo “carne” para produtos de origem vegetal. A APIC defende que Portugal deve liderar esforços junto da União Europeia para adotar regulamentações semelhantes, garantindo que o termo “carne” seja exclusivo para produtos de origem animal.
A Carne Portuguesa: Um Legado Cultural e Económico
A criação de animais é muito mais do que uma atividade económica; é um pilar da identidade portuguesa. Pratos como a carne de porco à alentejana, o cozido à portuguesa, o leitão da Bairrada ou a chanfana são emblemas da nossa gastronomia, refletindo séculos de tradição, saber local e ligação à terra (Davidson, 2014). Estas iguarias não são apenas alimentos; são expressões culturais que contam a história de regiões como o Alentejo, onde a criação de porco alentejano é uma prática ancestral, ou a Bairrada, onde o leitão assado é um marco turístico.
O setor da carne sustenta comunidades rurais, gerando empregos diretos e indiretos e promovendo o desenvolvimento económico em áreas menos favorecidas. Segundo o INE (2024), a produção de carne emprega cerca de 50.000 trabalhadores em Portugal, muitos dos quais em pequenas explorações familiares que enfrentam a concorrência de grandes marcas globais. A diluição do termo “carne” por produtos vegetais ameaça esta herança, especialmente para pequenos produtores que não dispõem dos recursos de marketing de empresas multinacionais.
Um Chamado à União e à Ação
A APIC apela à união de todos os agentes do setor – desde os produtores aos consumidores, passando pelas autoridades nacionais e europeias – para proteger a carne portuguesa. A clareza na rotulagem não é apenas uma questão de justiça; é uma defesa da verdade científica, da transparência para o consumidor e da sustentabilidade de um setor vital. A carne portuguesa é sinónimo de qualidade, tradição e resiliência, e cabe-nos a todos garantir que continue a ser reconhecida como tal.
A APIC reitera o seu compromisso com os seus associados e com o futuro do setor. A carne portuguesa não é apenas um produto; é um legado que merece ser protegido. Juntos nesta causa, para que a nossa tradição, a nossa economia e a nossa identidade continuem a prosperar.
A APIC mantém-se disponível para os demais esclarecimentos considerados necessários.
Referências Bibliográficas
• Bender, A. (1992). Meat and Meat Products in Human Nutrition in Developing Countries. FAO Food and Nutrition Paper 53. Roma: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
• Comissão Europeia. (2013). Regulamento (UE) nº 1308/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho. Jornal Oficial da União Europeia, L 347/671.
• Davidson, A. (2014). The Oxford Companion to Food (3.ª ed.). Oxford: Oxford University Press.
• Instituto Nacional de Estatística (INE). (2024). Estatísticas Agrícolas 2024. Lisboa: INE.
• Lusk, J. L., & McCluskey, J. J. (2020). Consumer Perceptions of Plant-Based Meat Alternatives. Journal of Agricultural and Resource Economics, 45(3), 456-472.
• Regulamento (UE) nº 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho. Jornal Oficial da União Europeia, L 304/18.
• Williams, P. (2007). Nutritional Composition of Red Meat. Nutrition & Dietetics, 64(S4), S113-S119.
Fonte: APIC