Toca a campainha da Cáritas de Seia. Alguém do outro lado pede ajuda para roupa ou alimentação. “Temos para fazer 48 cabazes”, revela à Renascença Américo Correia, que dirige o destino da Cáritas local há quase 20 anos.
Nestas quase duas décadas, Américo não se lembra de uma tragédia idêntica à dos incêndios de 2017. No concelho houve duas vítimas mortais, 76 casas de primeira habitação ficaram destruídas e 18.500 hectares de floresta queimados.
“Foi uma angústia muito grande. Sentimos o pavor das populações. Ver um pai ou mãe ou irmão no meio das chamas. Eu desloquei-me aos locais, mas quem sentiu mais foram as pessoas que viviam naquelas localidades, povoações evacuadas, que tiveram de fugir”, relembra, com angústia.
A proximidade das populações é uma das grandes vantagens das Cáritas, e isso viu-se nos incêndios de há dois anos. O dia 15 de outubro de 2017 deixou marcas visíveis que se refletem ainda hoje. Américo Correia diz que, “atualmente, os pobres continuam mais pobres”.
“Fala-se muito, mas ajuda-se pouco”, lamenta. “Naquela altura toda a gente quis acudir e deitar a mão”, mas passado um ano “foi tudo para o esquecimento, algumas pessoas sentem-se revoltadas, outras conformam-se com a situação”.
Uma das preocupações iniciais da Cáritas que Américo dirige foi ultrapassar as burocracias.
“Foi logo na altura. Enquanto houve disponibilidade de financiamento da Cáritas nacional, pediu-se orçamento a dois empreiteiros muito ativos e interessados pela causa, e que executaram logo os barracões, a reconstrução de duas casas, além da compra de alfaias e ração para os animais”, recorda. O valor total do investimento foi de 81 mil euros. Depois disso “chegaram-nos muitos mais pedidos, mas não pudemos aceitar mais, porque não havia mais verba”. Isso, aponta, “foi doloroso”.
Para Américo Correia, a Cáritas consegue ter um olhar atento às dificuldades imediatas, que é muito diferente do olhar do Estado ou das autarquias. “O Estado e as câmaras passaram muito ao lado das situações. A pessoa se tem fome, tem que se lhe dar pão na altura para matar a fome, era na altura que se precisava, não se pode adiar e adiar. Ainda hoje o nosso Estado continua com adiamentos”, lamenta.
“O pobre por ser pobre, não tem direito a entrar num café?”
Américo tem 74 anos, quase 20 deles à frente da Cáritas de Seia. Tal como ele, quase todos os voluntários da Cáritas de Seia – à exceção do seu neto, Henrique Faria, de 20 anos – já passaram há muito a barreira dos 60, mas a ajuda é feita de boa vontade.
Luísa Oliveira, de 65 anos, e Maria José, de 69, são duas das voluntárias. Hoje estão a preparar roupas para entregar às vítimas dos incêndios.
“Roupa, cobertores, lençóis, tudo o que for preciso para as casas”, explica Maria José, enquanto Luísa prepara fatinhos de criança e de bebé para dar. “Tanta gente que morreu, tanta gente que ainda precisa de ajuda. São tudo coisas novas, nada usado”, salienta.
A despensa, essa, está vazia, mas vai voltar a encher-se de alimentos para os cabazes que são distribuídos mensalmente a 50 famílias, algumas delas vítimas dos incêndios.
Ao toque da campainha, Américo pede-nos que se desligue o gravador, porque por aqui o silêncio é de ouro. “Não vou indicar nomes nem localidades. Não temos o direito de expor o nome das pessoas que ajudamos. Os pobres têm a sua dignidade. Às vezes acusam ‘Fulano vai para o café e bebe café’, e eu pergunto, o pobre por ser pobre não tem direito a entrar num café?”
“Um chocolate quente para adoçar a boca…e mais seis chocolates”, pede Américo no café ao lado das instalações da Cáritas de Seia. Um chocolate quente “ajuda a disfarçar a dor”, como aquela que sentiram os que perderam tudo nos incêndios de 2017.
De acordo com dados disponibilizados pela Cáritas Portuguesa, a maioria das ações previstas na campanha “Cáritas com Portugal, abraça as vítimas dos incêndios” (de junho e outubro), foram concluídas.
A sua implementação esteve a cargo das Cáritas diocesanas de Coimbra, Guarda, Portalegre-Castelo Branco e Viseu. Foram apoiadas 265 famílias através da construção, ou reconstrução, de 50 habitações, da recuperação de seis empresas, da reparação de 134 infraestruturas agrícolas, da aquisição de material de lavoura e da disponibilização de animais.
Para esta ação de emergência foram disponibilizados 2 332 912,81 €, angariados através do ofertório e do contributo de muitos portugueses, e que permitiram reconstruir casas, mas também amenizar a vida de muitas famílias que continuam a retirar da terra complementos essenciais à sua subsistência.