Uma área superior à dimensão da cidade do Porto, essencialmente nos concelhos de Beja, Évora e Serpa, está a usar águas públicas da Barragem de Alqueva sem autorização, em muitos casos há já vários anos, incorrendo em possíveis infrações graves ao ordenamento do território.
Apesar da gravidade da situação, a entidade gestora e a entidade nacional do regadio ficam-se por meias medidas, com muitos dos infratores impunes e a retirar proveitos do uso ilegal de águas públicas.
Ilegais de Alqueva são o 5.º maior perímetro de rega da região do Alentejo
Com uma área de cerca de 6 500 hectares (ha), as áreas com rega não autorizada juntas constituiriam um dos maiores blocos de rega da região do Alentejo, já de si a região com os maiores regadios coletivos do país. O uso ilegal ultrapassa em escala os aproveitamentos hidroagrícolas do Roxo, Vale do Sado e Campilhas e Alto Sado.
Grande parte das situações correspondem a projetos agrícolas de grande dimensão que estão parcialmente dentro dos perímetros de rega do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA), ou em áreas fora destes, mas autorizadas pela entidade gestora (áreas precárias). Apesar de os promotores serem já beneficiários do investimento público, decidiram ainda assim expandir mais a sua área, para zonas não autorizadas, não sujeitas a avaliação de impactes.
O uso desta água levou a conversões culturais que geram irregularidades do ponto de vista do ordenamento: em conflito com áreas de proteção de águas públicas (como na Albufeira do Roxo e na Albufeira do Enxoé), em áreas da Rede Natura 2000 e em possível violação dos planos diretores municipais (como em Beja e Serpa), causando a destruição de charcos temporários mediterrânicos (potencial habitat prioritário 3170, da Diretiva Habitats) e a degradação de bosquetes de quercíneas que haviam sido excluídos dos blocos de rega oficiais após procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA).
Denúncias de conversões culturais fora dos perímetros de rega do EFMA têm chegado à Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), entidade gestora do empreendimento, desde 2019, com ocorrências que foram identificadas já em 2018. As áreas denunciadas coincidem com estas áreas com uso não autorizado de água. Segundo a EDIA, apenas a partir de março de 2022 é que a entidade gestora formalizou queixas junto da autoridade nacional do regadio – a Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) – mas apenas uma fração das situações foi reportada (cerca de 35% da área identificada).
André Pinheiro, da ALMARGEM, alertou “O descontrolo na expansão das áreas regadas, naquela que é a obra de regadio de referência em termos de modernidade, é imensamente preocupante. Num cenário em que a água é um bem tendencialmente mais escasso, tem de se garantir o estabelecimento de limites claros para o uso, que se pautem por princípios de equidade e que, no mínimo dos mínimos, garantam o cumprimento das Declarações de Impacte Ambiental e os regulamentos aplicáveis. Estamos a falar de águas públicas que, já de si, beneficiam um número limitado de privados. É importante assegurar que não existe impunidade ao uso irresponsável e doloso deste precioso recurso”.
Restrições aplicadas, mas as áreas ilegais vão permanecer para mais uma campanha de rega
Nesta campanha de rega, a EDIA irá restringir a água a ceder aos usufrutuários, usando valores de referência para a rega das culturas declaradas[i]. A entidade gestora remeteu para a DGADR a instauração dos processos de contraordenação. Segundo a autoridade nacional do regadio, em resposta ao ofício da ZERO, só recentemente (abril de 2023) foi proposta nomeação de um instrutor de processo de acusação, e estará em constituição uma equipa para dar resposta às situações conhecidas “no último ano”. Um desfasamento de atuação e uma permissividade incompreensíveis dada a dimensão e proliferação do problema, que põe em causa a imagem de eficácia de gestão deste tipo de empreendimentos, face a uma crescente pressão e influência do agronegócio na região e a nível nacional.
Segundo Pedro Horta, da ZERO, “É necessária maior transparência e escrutínio da gestão dos aproveitamentos hidroagrícolas de grande dimensão, o Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva não é exceção. Dado o avultado investimento público, que se sustém bem para lá da conclusão da 1ª fase do projeto – e em auxílio das exigências colossais em termos de consumo de energia – deve ser garantido que o empreendimento é produtor de bens públicos. A postura pouco decidida face a situações de abuso por parte das entidades competentes revela que não está garantida uma gestão sóbria e equilibrada das águas públicas. Como se explica a cedência de água para áreas que estão em violação ao ordenamento do território? Como se admite o regadio em áreas não autorizadas, de grandes dimensões, durante anos?”.
A questão dos precários permanentes
O uso de água fora das áreas sujeitas a AIA não se prende só aos usos não contratualizados, pelo contrário, são sobretudo áreas contratualizadas com a entidade gestora, através de um regime designado precário, previsto de forma geral no Regime Jurídico dos Aproveitamentos Hidroagrícolas (Decreto-Lei n.º 86/2002, redação atual). Os utentes a título precário ficam sujeitos a uma avaliação casuística e periódica da contratualização de água, no entanto a maioria dos utentes precários de Alqueva regam culturas permanentes, o que coloca a necessidade de uma segurança de abastecimento de água plurianual, subvertendo o princípio de avaliação campanha-a-campanha e colocando a entidade gestora numa situação algo comprometedora.
As áreas precárias eram, em 2021, quase 36 000 hectares, mais de 30% da área regada pelo EFMA[ii]. Muitas destas áreas correspondem também a violações ao ordenamento do território e outros impactes ambientais[iii]. Apesar da EDIA ter manifestado, em 2019, que não iria atribuir água a título precário para culturas permanentes[iv], entre 2019 e 2021 registou-se na mesma um aumento de mais de 4 000 ha nas áreas precárias, o que corresponde a quase exclusivamente novas áreas de culturas permanentes[v].
Esta opção de gestão generaliza-se a vários outros regadios coletivos de iniciativa estatal geridos por associações de regantes e beneficiários[vi]. Nas bacias hidrográficas do Guadiana, do Mira e do Sado a área regada a título precário mais que quadruplicouii, sem que tenha sido feita avaliação de impactes.
Acompanhamento de Alqueva sem condições para um efetivo escrutínio do modelo e opções de gestão
O Conselho de Acompanhamento do Regadio de (CAR) Alqueva, constituído em fevereiro de 2019 (Despacho n.º 1652-A/2019, do gabinete do então Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural) é um órgão consultivo de natureza permanente com o “objetivo de acompanhar a exploração EFMA, por forma a salvaguardar o uso eficiente da água para rega, a produtividade, rentabilidade e competitividade da agricultura praticada no âmbito do empreendimento, bem como a sustentabilidade da componente hidroagrícola do EFMA”. No entanto, é integrada apenas pelas entidades promotoras do regadio (DGADR, DRAP Alentejo, EDIA e COTR) e as organizações de beneficiários, ficando em défice a representação dos interesses das populações, através de uma representação dos municípios, as entidades responsáveis em matérias ambientais e de preservação da biodiversidade (APA e ICNF), assim a academia e as organizações da sociedade civil nas áreas social, ambiental e do desenvolvimento local.
O resultado tem sido o avançar de um modelo de gestão que, cada vez mais, aparenta ter sido capturado pela minoria de beneficiários do regadio coletivo, sem uma transparência e escrutínio indispensáveis a empreendimento de natureza pública que de facto queira prestar serviço público.
[i] EDIA, fevereiro de 2023. Plano Anual de Utilização de Água no EFMA
[ii] DGADR, abril de 2023. Aproveitamentos Hidroagrícolas do Grupo II do Continente – Culturas e Áreas Regadas em 2021
[iii] Comunicado ZERO, novembro de 2019. “Descontrolo na instalação das explorações agrícolas de regadio na área de influência de Alqueva”: https://zero.ong/blog/noticias/descontrolo-na-instalacao-das-exploracoes-agricolas-de-regadio-na-area-de-influencia-de-alqueva/
[iv] EDIA, março de 2019. Newsletter 1 de 2019, “REGANTE PRECÁRIO E CULTURAS PERMANENTES”
[v] DGADR, setembro de 2020. Aproveitamentos Hidroagrícolas do Grupo II do Continente – Culturas e Áreas Regadas em 2019
[vi] Comunicado ZERO, abril de 2021. “Intensificação agrícola fora dos grandes regadios ocupa 30% da área regada e foge à avaliação de impacte ambiental”: https://zero.ong/blog/noticias/intensificacao-agricola-fora-dos-grandes-regadios-ocupa-30-da-area-regada-e-foge-a-avaliacao-de-impacte-ambiental/
Fonte: Zero