Recentemente o pivot da RTP e escritor José Rodrigues dos Santos, foi entrevistado para a Radio Observador onde procedeu a declarações sobre a pecuária que, no mínimo, se podem classificar de ignorantes. Não seria tema de conversa, não fosse JRS uma figura pública, conhecida e com algum carisma no panorama televisivo nacional. Sobre essas declarações muito (alguma coisa) já foi dito e não me cabe a mim dar mais visibilidade a quem, manifestamente não a merece (não é de agora, basta ver o que disse sobre o holocausto…), a minha reflexão é outra: o acantonamento a que o setor da agropecuária se encontra, muito por culpa própria.
Desde os primórdios dos tempos que o homem domesticou animais e plantas para sua subsistência. Os estudos todos indicam que foi o consumo de carne que permitiu a humanidade desenvolver-se em termos anatómicos com a inclusão de proteína de qualidade e biodisponibilidade na sua alimentação. Em conjunto com a utilização do fogo, o homem pode canalizar a estrutura muscular “rude” usada para rasgar carne crua, para uma maior capacidade craniana. A energia “poupada” nos processos digestivos de plantas, pode ser usada para um cérebro maior.
É com este capital de milhares de anos que nós, profissionais do setor, nos “sentamos” no alto da nossa sabedoria de experiência feito com a certeza que fornecemos o mais básico da subsistência humana: alimentação de qualidade!
O aumento da população mundial e do rendimento disponível, trouxe o desafio de mais bocas a alimentar, com mais exigências o que conduziu inevitavelmente a uma intensificação dos processos produtivos. O planeta não cresce (antes pelo contrário) e cada unidade de superfície tem de produzir para mais “bocas”. A acrescentar a isso temos o facto de somente uma parte (há quem aponte 30%) da terra disponível ser viável para a produção de alimentos vegetais para os humanos. Uma outra parte será destinada a pastagens onde ruminantes fazem o milagre de transformar alimento de baixa digestibilidade para o homem, em proteína de qualidade, carne e leite que podem ser consumidos. É esta, numa apresentação simples a equação com que nos deparamos e em sinais de inversão.
Com este panorama, o setor agropecuário habituou-se a não ter ataques certo da sua função. Nunca se preparou para ser contestado (não sempre sem razão), não se modernizou em aspetos de comunicação e hoje sente-se sem estratégia não sabendo como responder a uma mobe essencialmente urbana, que põe em causa conceitos que desconhece mitos que cria.
Não tenhamos ilusões, as novas tendências e ações contra o setor agropecuário não são “inocentes”. Existem interesses económicos e políticos fortes que assim determinam e alimentam os movimentos e “opiniões” que nos contestam e tentam alterar o que milhares de anos nos tornaram. Estes “lobby” baseiam-se na desinformação e têm por alvo um publico que desconhece a realidade, mas que, ao mesmo tempo tem preocupações ecológicas e de sustentabilidade (parece um paradoxo, mas infelizmente temo que assim não seja). Dizem que comer carne causa o cancro ou que os ruminantes são a maior causa de produção de gases efeito de estufa sem, contudo, o demonstrar. Ignorando, ou escondendo os malefícios da mono cultura, conhecidos há milhares de anos! São movimentos, como disse organizados, bem financiados, e com uma estratégia bem definida e de longo prazo, alicerçada numa eficaz e eficiente comunicação.
Perante este cenário temos um setor que se acantonou no seu conservadorismo e certezas, cuja reação aos ataques de um exército bem armado são com as mesmas armas dos seus antepassados e de forma não estruturada. A prova tem sido a constante disseminação de notícias, ideias, mitos sobre a produção animal (muitas vezes tenho de explicar aos meus alunos da faculdade que os animais não são alimentados com hormonas) sem uma reação, mas, pior que isso, não existe nenhuma estratégia proactiva de comunicação que desmonte com factos perante o publico desconhecedor (e consumidor) os mitos com que nos atacam. Chegamos ainda ao ponto de permitir que supostos profissionais do setor “ajudem à festa” quanto uma cadeia de distribuição anuncia na TV produzir carne com a certificação “livre de antibióticos e hormonas”! O que pensará o consumidor? O obvio… que as outras têm. E quando no referido anúncio aparecem veterinários (ou pelos menos assim são apresentados) a corroborar a tese (para não chamar fraude), está tudo dito!
E tudo isto sem uma palavra das associações que tenha o mesmo alcance, o mesmo impacto que o referido anúncio. As palavras de JRS e todos os JRS’s desta vida não podem viajar sozinhas, têm de ter o nosso firme, mas eficaz contraditório. Sei que foram emitidos comunicados, cartas abertas, mas, todas juntas tiveram o alcance das palavras do pivot e nem lhe minorou o dano.
Está no tempo das associações assumirem uma postura conjunta e consistente na definição de uma estratégia de comunicação de longo (muito longo) prazo. Seria importante a criação de um gabinete de comunicação intra-sectorial onde os interesses das diversas associações, desde produtores, criadores e alimentos compostos estivessem alinhados em todo o processo. Um gabinete/organismo/grupo de trabalho altamente profissional e dotado de orçamento próprio. Até agora têm se feito o possível, mas não podemos continuar a travar uma batalha entre amadores e profissionais. O recente caso despoletado pela JRS e as avulsas reações são disso exemplo. Não se contesta, obviamente a necessidade dos comunicados emitidos nem a sua bondade mas tão somente a sua eficácia. Mais uma vez reagimos e não atuamos em antecipação.
Esta é uma simples reflexão que pretende ser um contributo para a discussão que urge ter no sentido de abandonar-mos o marasmo conservador em que nos tornamos vulneráveis perante uma crescente tendência com interesses obscuros.
Temos de aproveitar também esta oportunidade para reflexionar e debater o setor. O que temos nós para oferecer (muito, na minha modesta opinião)? Como o vamos oferecer? Como vamos conquistar aqueles que hoje de nós duvidam (e cuja duvida alimentamos ao permitir sem esclarecimento, anúncios como os do Pingo Doce)? Como podemos unir esforços a nível global na sobrevivência e honra de todo um setor que, em alguns casos, já definha.
Os tempos são de combate por uma forma de vida que nos trouxe até aqui ao longo de milhares de anos mas, sobretudo na defesa do planeta e das gerações futuras a quem o pedimos emprestado e a quem teremos de entregar sustentável.
Luis Pedro Miguel, PhD
Engº Zootecnico