Helena Freitas, que dispensa apresentações, publicou, no Público de 26 de Agosto de 2023 um artigo chamado “Tributo às árvores”. São desse artigo as citações que usarei, embora não na sequência com que aparecem no artigo.
O que me interessa discutir é esta afirmação “As árvores são bens públicos”, não do ponto de vista jurídico (desse ponto de vista a afirmação seria um disparate tão grande que nem sequer merecia referência), mas pelo que significa ideologicamente.
É na sequência da afirmação anterior que aparece um parágrafo extraordinário:
“Apesar deste reconhecimento, é surpreendente a ligeireza com que ainda se decide abater uma árvore. Desde logo, a sua condição de ser vivo justificaria outra ponderação, mas as árvores são facilmente ignoradas e tratadas como objetos sem vida”.
O parágrafo é tão estranhamento radical, que é preciso procurar o contexto desta afirmação, e na verdade esse contexto é o das autorizações recentes para o abate de sobreiros por razões de interesse público, de que falei neste post.
Se dúvidas houvesse, Helena Freitas vai direita ao assunto: “Estes dias, fomos surpreendidos com a decisão ministerial de permitir o abate de cerca de 1800 sobreiros, apesar de se tratar de uma árvore com estatuto de conservação particular e com relevância visível para a economia nacional. Outros confrontos se seguirão, entre a conservação dos valores naturais e as soluções impostas pela transição energética, obrigando a edificar um quadro ético mais sólido, em que a árvore ocupará um lugar vital. A perda de uma árvore, especialmente de árvores mais velhas, é uma ferida que se estende muito além da copa, dos ramos ou da raiz de um indivíduo”.
Este tipo de afirmações “A perda de uma árvore, especialmente de árvores mais velhas, é uma ferida que se estende muito além da copa, dos ramos ou da raiz do indivíduo”, serve como fundamentação geral do interesse intrínseco das árvores.
O artigo está cheio deste lirismo supostamente técnico e ético que, espremido, espremido, na verdade não ajuda nada a sociedade a fazer opções, nem ajuda nada as árvores.
Grande parte do montado de sobreiro português é do século XX, plantado em linhas direitas, muitas vezes na entrelinha da vinha que começava a dar menos dinheiro, mas que se ia mantendo enquanto o sobreiro crescia, com olho no lucro futuro que a cortiça, em valorização, traria.
Grande parte, a esmagadora parte, da passagem dos cerca de 10% de arborização do país no fim do século XIX, para os mais de 35% actuais, foi feito espalhando penisco e levando os pinhais a uns estratosféricos milhão e duzentos mil ou milhão e meio de hectares de ocupação, de que hoje resta mais ou menos metade, tendo a outra metade sido em grande parte substituída por eucalipto.
Não porque as árvores são bens públicos, mas exactamente porque são bens privados: foi o interesse do proprietário que florestou o país e fez aumentar brutalmente o pinhal e o montado de sobro, tal como foi o desinteresse do proprietário no montado de azinho, por causa da proibição da criação de porco de montanheira para controlar a peste suína africana, que o fez arrancar azinheiras na segunda metade do século XX.
O lirismo do artigo, em si mesmo, não é bom nem mau, pessoalmente acho que acrescenta pouco à literatura, mas quem sou eu para avaliar isso, o problema deste lirismo de base supostamente técnica é quando começa a contaminar as políticas públicas, a reboque de eleitores urbanos que acham um crime cortar sobreiros.
Para que não restem dúvidas sobre a fragilidade dos argumentos, façamos um exercício simples.
Tendo presente o que citei acima sobre a importância de cada árvore e a responsabilidade pesada que assiste ao corte de cada árvore adulta, alteremos ligeiramente o parágrafo de Helena Freitas que se aplica ao parque eólico que motiva o corte dos tais quase 1900 sobreiros e adaptemos o mesmo parágrafo ao parque solar que vai ser feito no concelho ao lado, mantendo o rigor da informação aplicável e cortando a única frase não aplicável, sobre o estatuto de protecção das duas espécies, uma qualificação meramente administrativa.
“Estes dias, fomos surpreendidos com a decisão ministerial de permitir o abate de cerca de um milhão e meio de eucaliptos, … e com relevância visível para a economia nacional. Outros confrontos se seguirão, entre a conservação dos valores naturais e as soluções impostas pela transição energética, obrigando a edificar um quadro ético mais sólido, em que a árvore ocupará um lugar vital. A perda de uma árvore, especialmente de árvores mais velhas, é uma ferida que se estende muito além da copa, dos ramos ou da raiz de um indivíduo”.
Parece esquisito, não parece?
É porque é mesmo esquisito, tanta comoção pelo abate de 1900 sobreiros e nenhuma comoção pelo abate de um milhão e meio de eucaliptos, quando a justificação usada é o do valor intrínseco de cada árvore, o seu papel como sumidouro de carbono, o facto das árvores serem seres vivos extraordinários, fontes de alimento e oxigénio, etc., etc., etc..
É que se afinal o problema é a especificidade do sobreiro, e não o valor ético das árvores, então é preciso explicar um bocadinho melhor que diferenças existem (e eu até acho que existem algumas) entre sobreiros e eucaliptos ou sobreirais e eucaliptais.
Não chega a música do valor ético das árvores para fundamentar políticas públicas sem qualquer fundamento técnico e social.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.