O filósofo inglês Roger Scruton, autor do livro Bebo, logo existo, escreveu um dia que, «usado correctamente, o álcool é um estímulo para a conversa, um solvente para o embaraço e um lembrete de que a vida é uma bênção, e as outras pessoas também.» A cultura e as tradições europeias estão imbuídas ou, por que não dizê-lo, embebidas de referências ao vinho. Isso demonstra a centralidade que este assumiu durante séculos na forma como socializamos, como celebramos e, até, como rezamos.
De acordo com estatísticas de Maio deste ano, relativas a 2021, os portugueses foram o povo que mais vinho consumiu per capita no mundo. Portugal é o quinto país europeu no tocante à área dedicada à vinha. Estes dados não escondem a circunstância de o vinho vir perdendo terreno à escala global desde 2008, segundo dados da Comissão Europeia, e que esta quebra se fica a dever a preocupações de saúde e à alteração dos padrões de consumo. O executivo europeu previu em 2020 que a tendência de decréscimo se mantivesse, ainda que a um ritmo mais lento, e que a média da União Europeia viesse a situar-se nos 25 litros per capita em 2030.
Independentemente destas projecções menos animadoras, o vinho tem vindo a ser crescentemente percebido como um produto em torno do qual se estruturam vários modelos de negócio, sendo a porta de entrada para serviços e experiências muito ricos e diversos. De todos, destacaria o enoturismo como um sector em franco crescimento e no qual Portugal tem tudo o que é preciso para se afirmar: história, memória, natureza, diversidade, qualidade excepcional do produto-base e da hospitalidade que o enquadra. O papel liderante da APENO neste sector merece ser saudado e apoiado.
Aos juristas cabe aferir se a legislação que temos é a adequada para servir os propósitos dos que produzem, dos que medeiam as transacções, dos que oferecem serviços e dos que consomem este produto único e os seus derivados. Por derivados lembro, por exemplo, o chamado “vinho biológico desalcoolizado” sobre o qual são esperadas novidades a nível europeu sobre práticas autorizadas em determinadas condições para a sua produção.
Já este mês, a Comissão Europeia decidiu dar início a um procedimento de infraçcão através do envio de uma carta de notificação para cumprir a Portugal por alegado incumprimento das regras da UE em matéria de impostos especiais de consumo precisamente sobre o vinho. Trata-se, segundo a Comissão, de uma incorrecção de aplicação das taxas para mais e para menos. Uma dissonância entre a definição de vinho à escala europeia e o modo como ela é interpretada em Portugal, tendo por base a Directiva 92/83/CEE relativa à harmonização da estrutura dos impostos especiais sobre o consumo de álcool e bebidas alcoólicas.
A rotulagem tem também dado azo a aceso debate a esta escala, nomeadamente no âmbito do Plano Europeu de Luta contra o Cancro: a declaração nutricional e a lista de ingredientes deverão ser acrescentadas aos rótulos dos vinhos produzidos após 8 de Dezembro de 2023. Por iniciativa portuguesa, poderão também ser fornecidas em formato electrónico, por exemplo, através de um código QR.
Num mundo em mudança, é certo que o vinho também não ficará imune a ela, tal como a legislação que o enquadra. A temperança e a moderação que é recomendada aos consumidores deste produto especial também devem ser impostas aos legisladores (nomeadamente europeus) para que evitem maximalismos e atitudes proibicionistas com que todos teremos a perder. Infelizmente, há quem procure demonizar activamente o consumo do vinho e confundir os resultados e efeitos da moderação e do excesso. A prevalecer a sua vontade – que deve ser contrariada e para a qual os decisores portugueses devem estar (muito) bem despertos desde já – teríamos em breve uma nova “lei seca” que a ninguém beneficiaria.
Regresso a Scruton para recordar os seus conselhos sobre como fruir melhor o melhor vinho:
«Primeiro, rodeie-se de amigos. Em seguida, sirva algo que seja intrinsecamente interessante: um vinho com raízes num terroir, que lhe chegue de um lugar privilegiado, que convide ao debate e à exploração, que desvie a atenção das suas próprias sensações e a conceda ao mundo. Partilhe cada memória, cada imagem e cada ideia com a sua companhia; procure um afecto sincero e descontraído; acima de tudo, pense nos outros e esqueça-se de si.»
Nesse mesmo espírito há que explorar as múltiplas vertentes desse mundo único a que só se acede através do vinho, escrutinar os principais problemas e desafios que o afectam e, quem sabe, propor soluções que o enriqueçam e o aproximem das nossas sociedades demasiado afastadas da terra. Perder esta relação significará desperdiçar milénios de civilização.
Um brinde e Feliz Natal a todos os leitores do Agroportal!
Consultor da Abreu Advogados