“Estes dias de confinamento dão azo à expansão da nossa criatividade e à tomada de decisões que, de outra forma, não tomaríamos. Falo de decisões pequenas. Daquelas que não são pensadas para mudar o mundo.”
Estes dias de confinamento dão azo à expansão da nossa criatividade e à tomada de decisões que, de outra forma, não tomaríamos. Falo de decisões pequenas. Daquelas que não são pensadas para mudar o mundo. E falo de criatividade num sentido muito aberto, como sendo a habilidade de gerar ideias novas, mesmo que delas nasça pouca fruta. Não mergulho nas notas de Keith Jarret para buscar um conceito de criatividade que aqui queira usar, embora um mergulho, sem botija, nas suas notas nos traga sempre um perfume ou uma Colónia nunca antes sentidos.
Essa criatividade, mais singela, fez nascer uma horta em minha casa. Uma horta num apartamento, mais propriamente na varanda de um apartamento. Uma horta em minha casa fez nascer um campo sem fim. Abriu-se mais uma janela com vista sobre aquilo que escolhemos ver.
Dessa horta deviam nascer cenouras, coentros, rúcula, salsa e chili. Quer dizer, deviam não. A minha mulher bem diz: “olha, vês, já estão a nascer …”. E, se ela diz, eu acredito que aqueles micro pontos verdes são os alimentos que ela diz estarem a nascer. E acredito porque sempre que os vejo nascer no frigorífico e vaguearem por outros eletrodomésticos da nossa casa até chegarem a um prato que encanta as nossas refeições, temperadas de Mingorra, confirmo que aqueles micro pontos devem mesmo ser o que a minha mulher diz que são. E quando atiro as papilas gustativas para cima daqueles pratos, até acredito nisso e em muito mais. Parecem notas do Jarret a saltar diretamente da horta para os meus sentidos.
(Pausa. Escrevo a pausa que estou a fazer porque isto requer as suas pausas para perceber o que está para nascer nesta horta que também é o teclado que uso para semear estes micro pontos negros que dão sabor ao texto).
Agora que fiz uma pausa e que Coltrane já sopra ao meu ouvido, noto que talvez também eu esteja a nascer na horta que tenho em minha casa. São já tantos os dias em que aqui estou que parece que faço parte da horta que tenho em minha casa. Apercebo-me, agora, que fiz uma pausa, que há mais de 9 anos que não estava tantos dias seguidos no mesmo local. Em minha casa. Foi preciso ter nascido uma horta em minha casa para perceber isso. Antes tivesse nascido um pomar em minha casa e tinha todos os frutos no mesmo cesto. Mas foi uma horta que nasceu em minha casa, por isso tenho frutos que estão longe.
Estes trocadilhos (ou rodriguinhos linguísticos, como gosta de escrever o Tó Zé, o agricultor que gerou as sementes destas linhas aqui às quartas) fazem-me perceber que quando nos damos uma pausa, criamos a oportunidade de ter uma horta em casa. Claro que este é o momento certo para o lugar-comum de que colheremos o que agora decidirmos plantar. Pena é não ser assim tão comum irmos a esse lugar onde depositamos as sementes dos dias que virão.
Mas quando vamos e vemos os pontinhos verdes que dizem que algo vem lá, que alguém lá está, percebemos como podemos plantar o amor nutrido na saudade que a pandemia nos empresta. Que a plantação nos faz sentir presente o fruto que a sua época nos devolverá. E que aqueles frutos podres que antes nos deixavam o caminho nauseabundo já não abundam, já não cheiram, já não estão lá, na nossa horta que agora temos em casa.
É no eletrizante chiar do dedilhar de Metheny e nas memórias de aula que foi magna que encontro na horta que agora tenho em casa a plantação da empatia. Essa forma de olharmos para o mundo calçando tantos e tantos sapatos mesmo quando passamos o dia de pantufas. Nessa prateleira da horta que agora tenho em casa (sim, é uma horta vertical), vejo a plantação da empatia em três vazos. Três pequenos vazos. Já todos cheios de pontinhos verdes. Nas instruções de uso vem escrito: “A investigação cerebral fala-nos de três tipos de empatia. A empatia cognitiva permite-nos compreender como a outra pessoa pensa; vemos a sua perspetiva. Na empatia emocional, sentimos aquilo que o outro está a sentir. E a terceira, a preocupação empática ou cuidado, reside no âmago da compaixão” (instruções a cargo de Daniel Goleman e Richard J. Davidson).
Percebemos, assim, já com António Pinho Vargas a marcar as estações, que também As Folhas Novas Mudam de Cor. E como as nossas cores podem ter mudado e ainda vão mudar. E como ninguém se lembrou de nos avisar que as cores iam todas mudar, que novos arcos-íris se iam formar e que os potes de ouro que os fazem brilhar iam surgir às janelas um pouco por todo o mundo com as “folhas novas” a ensinarem-nos quão importante é termos uma horta em nossa casa.
Como seria, como será, se em todas as casas tivermos uma horta? Como seria, como será, quando todos os campos estiverem novamente prontos para cultivo?
O pousio é para quem percebe alguma coisa de cultivo. Eu como não percebo nada, vou continuar a pedir à minha mulher que me diga o que são queles pontinhos verdes e vou continuar a cultivar. A estação mudou bruscamente. Mas não é a estação terminal. A viagem está em curso.
Curioso que este texto acompanhado a banda sonora termine com a banda sonora do Public Enemies, que ontem veio ter comigo oferecida num vazo cheio de liderança, e que me diga, bem ao ouvido, em voz doce, de Diana Krall, “Bye Bye Blackbird” (tinha que ser Diana, pois claro).
E se todos tivéssemos uma horta em casa, o que escolhíamos plantar? E agora que todos temos uma horta em casa, o que escolhemos plantar?
João Laborinho Lúcio – Coach, membro da International Coaching Federation
Discussão sobre este post