Preocupa-me a notícia que li recentemente, que afirma que Portugal votou a favor da lei do restauro da natureza. Não porque seja contra o restauro da natureza, mas porque já tinha ouvido várias notas acerca do texto em votação que me deixaram muito preocupado.
Foi a última gota de água. Não tinha solução. Lá tive de ir ler a dita lei do restauro da natureza!
O motivo das minhas preocupações era, infelizmente, justificado. Já tinha ouvido dizer que se propõe a destruição de barragens na UE, a bem da criação de uma rede de rios com cerca de 25.000 km. Destruir barragens? Isso, para qualquer português, deveria ser um sinal de alarme forte, devia-nos preocupar profundamente, porque é sinal de que já ganhou a ideia de que guardar água e utilizá-la é estragar água e o ambiente que a envolve. Um perfeito disparate, pois ambos os objectivos podem, e devem, ser perseguidos em simultâneo: desenvolver a economia agrícola de uma região e proteger os ecossistemas relevantes da mesma.
Mais uma vez, o legislador europeu parece estar disponível para criar regras sem saber o custo que estas podem vir a ter. Isso ficou já demonstrado em vários exemplos relacionados com o Pacto Ecológico Europeu, em que estudos feitos pela AGROGES (aqui e aqui) mostraram que os custos económicos (em valor e em capacidade de abastecimento alimentar) seriam elevadíssimos tanto no que refere às medidas sobre fertilizantes como sobre agroquímicos. Porquê? Porque se cria directivas que não têm nenhum suporte ou análise de impacto. São ideias propostas sem fazer o trabalho de casa sobre qual o custo económico, e até ambiental, que delas pode advir.
Voltando ao texto da lei, este diz que os EM devem começar por identificar as barragens que se encontram obsoletas, para o seu uso… e entre os usos nem identifica a agricultura em particular, englobando-a no abastecimento de água ou nos outros usos. Não conheço situações em que haja reservas de água a mais, que se tenham tornado obsoletas para o abastecimento. Conheço algumas em que a distribuição precisa de ser modernizada e optimizada.
Para que não restem dúvidas, transcrevo o artigo em questão:
“Artigo 7.º
Restauração da conectividade natural de rios e funções naturais das planícies aluviais conexas
- Os Estados-Membros devem fazer um levantamento dos obstáculos à conectividade longitudinal e lateral das águas de superfície e identificar os obstáculos que é necessário remover para contribuir para a realização das metas de restauração estabelecidas no artigo 4.º do presente regulamento e do objetivo de restaurar o curso natural de rios numa extensão de pelo menos 25 000 km na União até 2030, sem Prejuízo da Diretiva 2000/60/CE, nomeadamente o seu artigo 4.º, n.os 3, 5 e 7, e do Regulamento 1315/2013, nomeadamente o seu artigo 15.º.
- Os Estados-Membros devem remover os obstáculos à conectividade longitudinal e Lateral das águas de superfície identificadas no n.º 1 do presente artigo, em Conformidade com o plano para a sua remoção a que se refere o artigo 12, n.º 2, alínea f). Ao removerem esses obstáculos, os Estados-Membros devem, em primeiro lugar, abordar os obstáculos obsoletos, que já não são necessários para a produção de energia renovável, a navegação interior, o abastecimento de água ou outras utilizações.
- Os Estados-Membros devem complementar a remoção dos obstáculos a que se refere o n.º 2 com as medidas necessárias para melhorar as funções naturais das planícies aluviais conexas.”
Na minha opinião, em Portugal precisamos de recuperar muitas infraestruturas hidráulicas, e de construir mais outras. A construção das barragens do Pisão e da Foupana, que julgo que sejam as mais adiantadas no seu procedimento público que precede a construção, não podem parar e não podem nunca ser barradas por uma lei que diz que vem restaurar o ambiente. Este artigo 7º, que transcrevi é, a meu ver, a base filosófica principal que, agora que foi aprovada, vai ser utilizada pelos grupos que se intitulam de ambientalistas para argumentar, acusar e impedir qualquer projecto hidroagrícola ou de fins múltiplos que venha a ser pensado no futuro. Não devíamos correr este risco!!
Talvez, na nossa enorme sapiência e poderio mental estratégico, nós portugueses, que estamos habituados a liderar os destinos da Europa, estejamos a pensar votar a favor e depois dizer que não temos barragens obsoletas!? (Favor notar que esta última frase constitui sarcasmo e não um devaneio completo da minha pessoa).
Não, o assunto é sério demais para que achemos normal e votemos em linha com uma visão desconhecedora da nossa realidade e que pode ter tanto impacto. É grave demais para que possamos ir como ovelhinhas a caminho do matadouro, sem nenhuma preocupação. Mas parece que é por esse caminho que seguimos.
Mas o problema é mais profundo que este das barragens. É de toda a argumentação da lei, de toda a filosofia. A justificação apresentada é que ecossistemas mais robustos e bem desenvolvidos estão mais defendidos dos incêndios e geram uma nova e vibrante economia verde que traz mais emprego e coesão. Ora, estes efeitos até existem, mas a sua escala é muito pequena, em comparação com os impactos da geração de emprego do regadio, e do contributo que este tem para a manutenção da população no território.
Destruir barragens para garantir que o território não arde e fica mais coeso, só pode mesmo ser ideia de quem não conhece o território português, nem a realidade climática do sul da Europa. Travar o avanço da desertificação, criar emprego e valor económico, isso sim garante que o território arde menos e não fica despovoado. Claro que isto tem de ser feito em simultâneo com preocupações ambientais fortes, mas isso é possível.
Adiante! O mal está feito e a lei foi aprovada na UE. Agora resta-nos pedir a quem lidera as nossas instituições públicas que analise a questão com uma base técnica, económica e ambiental robusta e séria, sem se deixar contaminar por ideologias e sem o tipo de preguiça (ou desonestidade) mental para aferir a importância das coisas que parecem ter estado na base desta lei. Além disso, podemos também pedir aos nossos representantes no Parlamento Europeu e na Assembleia da República que defendam os verdadeiros interesses de Portugal, e que, com esta base legal de fraca qualidade, consigam fazer o que verdadeiramente é melhor para os ecossistemas e as áreas de real valor ecológico que temos. São muito importantes, são valiosas e merecem conservação e restauro. Não merecem ser abordadas com a leviandade de quem legisla com bases ideológicas e não faz sequer o exercício de analisar criticamente os efeitos do que propõe.
Espero que os meus filhos venham a conhecer um país com muito valor natural, com muita protecção aos ecossistemas e com muita valorização da agricultura enquanto principal parceiro do ambiente. Não é nesse sentido que a filosofia da Europa está a caminhar. Temos de inverter a marcha! Temos, de uma vez por todas, de perceber que os verdadeiros ambientalistas são os agricultores e não os doidos que interrompem o transito e lançam tinta sobre quadros e sobre monumentos.
Miguel Vieira Lopes
Colaborador Técnico
O artigo foi publicado originalmente em AGRO.GES.