A semana que hoje termina foi marcada por dois momentos relevantes para o setor pela atualidade dos temas em análise. É o caso da celebração dos 35 anos da AGROGÉS e da apresentação de mais um livro do Professor Francisco Avillez, com textos publicados nos últimos anos, de 2021 a 2024, e que constituem excelentes reflexões sobre o estado e os desafios da agricultura portuguesa e europeia, os impactos das políticas públicas e, sobretudo, as contas da agricultura portuguesa. Naturalmente que devem ser lidos à luz do contexto em que foram escritos, mas as preocupações continuam bastante atuais. Infelizmente, os problemas de base não se alteraram: apoios ao rendimento versus investimento e desenvolvimento rural; necessidade de organização da produção; reforço do peso dos agricultores na cadeia de valor e na criação de riqueza; e o reconhecimento de que a agricultura deve também ser valorizada pela sua multifuncionalidade, pelos serviços ambientais e de conservação do território prestados à sociedade. E de preservação do solo, onde verdadeiramente começa toda a cadeia alimentar, tendo presente o ciclo de nutrientes no conceito de economia circular.
Temos de reconhecer que este pode e deve ser um momento de viragem nas políticas públicas, quer em Portugal, quer (sobretudo) na União Europeia, à luz do Diálogo Estratégico sobre o futuro da agricultura e da alimentação, ou dos relatórios Letta e Draghi, que devem ser levados muito a sério, se quisermos ter uma voz, respeitada, na (geo)política mundial.
Felicitando a AGROGÉS pelo aniversário e pelo evento, foi muito gratificante ter tido a oportunidade de contribuir para a reflexão sobre o que poderá ser a agricultura (e os agricultores) nos próximos 35 anos, com reputados especialistas em matérias como as políticas públicas, água, inteligência artificial, robótica e automação, ambiente e sustentabilidade, com a excelente moderação do colega José Diogo Albuquerque.
Pela nossa parte, focámos o tema da segurança alimentar, centrado na geopolítica e nas economias emergentes, nas indefinições e instabilidades atuais, os (sérios) riscos de disrupção nas cadeias de abastecimento face a alguns dossiês em discussão na União Europeia, designadamente as Novas Técnicas Genómicas (que, ao não avançarem, comprometem a inovação, o conhecimento, a competitividade e a sustentabilidade) e as cadeias livres de desflorestação ou EUDR, como é mais conhecido.
Quem nos segue neste espaço das Notas da Semana sabe o quanto aqui escrevemos e refletimos sobre este dossiê, as preocupações que fomos manifestando ao longo de mais de um ano, no plano interno e externo, os debates, colóquios, não só nossos, mas de inúmeros setores, análises de impacto, as cartas e exposições aos ministros da Agricultura e do Ambiente, bem como à Presidente da Comissão Europeia. Conhece igualmente a ausência de respostas, o silêncio “ensurdecedor”, o tempo que não tínhamos. Até que, a 2 de outubro, chegou a proposta da Comissão de adiamento por 12 meses da entrada em vigor da legislação.
Seguiu-se o processo de análise pelos Estados-membros, no Comité de Representantes Permanentes (COREPER), na Comissão e no Parlamento Europeu, com relativo consenso face às fragilidades do processo e à total incapacidade das autoridades e das empresas de implementarem os novos requisitos com o rigor necessário e, ainda mais complicado, a sua aplicação nos países de origem. Até porque eram praticamente inexistentes os documentos de orientação. Aliás, não foi por acaso que esta decisão da Presidente Von der Leyen foi tomada na sequência de fortes pressões dos países exportadores agropecuários, entre os quais o Brasil, que acolheu o G20.
No entanto, aqui chegados, e quando tudo se preparava para uma votação tranquila no Plenário de 14 de novembro, o Parlamento Europeu votou a favor da proposta da Comissão Europeia de prorrogação de 12 meses para a entrada em vigor do Regulamento da Desflorestação da UE. Além disso, também adotou uma série de emendas propostas pelo Partido Popular Europeu (PPE) para a criação de uma “categoria sem risco” visando reduzir a carga administrativa para países onde não há preocupações com a desflorestação, pelo que não seria necessário nenhum requisito de dados de geolocalização. Foi, entretanto, rejeitada uma alteração sobre o diálogo com os membros da OMC para facilitar a aplicação e execução deste regulamento.
O Parlamento votou por larga maioria a favor da proposta de adiamento da Comissão.
Refira-se que, antes da votação, o PPE retirou várias alterações relacionadas com a eliminação das obrigações dos comerciantes e o adiamento de dois anos em vez do de um ano. Entretanto, o COREPER, que se reuniu já esta semana, rejeitou por larga maioria as propostas de alterações, que não tinham sido vistas “com bons olhos” pela presidência húngara.
No dia 21, teve lugar a primeira reunião do trílogo para as negociações, que não se sabe como irão terminar. A reunião não produziu quaisquer efeitos e a próxima está agendada para 3 de dezembro. Certo é que se criou uma enorme insegurança jurídica que, no limite, pode colocar em causa o adiamento e obrigar à entrada em vigor da legislação a partir de 1 de janeiro de 2025, o que seria inacreditável.
Afinal, para quê tudo isto? O que pretendia o PPE nesta fase? O que ganhará se for obrigado a retirar as propostas, perante a recusa do Conselho?
É que o adiamento só é oficial depois de promulgado em termos legislativos, o que atualmente é entendido como sujeito às negociações sobre as alterações do Parlamento Europeu.
Em resposta à votação, as ONG (por exemplo, a WWF) estão a solicitar à Comissão Europeia que retire a sua proposta de adiamento, enquanto uma sondagem aos cidadãos europeus mostra que 75% apoiam a EUDR, mas certamente não fazem ideia do que está em causa e dos seus impactos. Tanto mais, como aqui já o referimos noutras ocasiões, quando a Europa é responsável por apenas 10% do problema. Como vamos lidar com os outros 90%?
Quem, de bom senso, não é contra a desflorestação? Mais demagogia não vai trazer transparência e respeito pelas instituições. Isto não significa que não partilhemos da maior parte das alterações introduzidas pelo PPE, mas, perante os prazos demasiado apertados, perguntamos se havia necessidade de correr estes riscos.
Apelamos, assim, ao Parlamento Europeu e ao Conselho para que se centrem na segurança regulamentar durante as negociações do trílogo e aprovem rapidamente o adiamento de um ano, tal como proposto pela Comissão Europeia.
Importa sublinhar a necessidade de a Comissão, os Estados-membros e as autoridades competentes tirarem o máximo partido do adiamento e trabalharem em estreita colaboração com as empresas e suas organizações, para uma aplicação harmoniosa e eficaz, com orientações setoriais de melhores práticas, que minimizem a complexidade administrativa e operacional. E simplificando o que for possível.
Nestes tempos de incerteza e instabilidade, com um Parlamento Europeu tão fragmentado, não precisamos de ser mais papistas que o Papa.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Um olhar para o PDR2020: investir no Agroalimentar – Jaime Piçarra – Notas da semana