Muito provavelmente, os próximos dias ficarão marcados pelas reações à apresentação do documento final relativo ao Diálogo Estratégico sobre o futuro da Agricultura na União Europeia, já entregue à Presidente da Comissão Europeia. Intitulado “Uma perspetiva comum para a agricultura e a alimentação na Europa”, o relatório apresenta uma avaliação dos desafios e das oportunidades, com um conjunto de recomendações.
De acordo com Bruxelas, as sugestões agora apresentadas (algumas delas, largamente repetidas noutras reflexões) irão orientar os trabalhos da futura Comissão na elaboração da sua visão para a Agricultura e a Alimentação – de resto, foi este o mote da reforma da PAC pós-2020, liderada pelo então Comissário Phil Hogan – que será apresentada nos primeiros 100 dias do segundo mandato de Úrsula von der Leyen. Certamente, e como temos aqui defendido, uma visão menos agrária e mais agroalimentar, mais preocupada com a segurança do abastecimento, com o papel da agricultura e o reforço dos agricultores na cadeia de valor, com a segurança alimentar e, esperamos todos, um maior equilíbrio entre a produção de alimentos e a proteção do ambiente e da biodiversidade.
Na nossa perspetiva, deve ser esta a visão, porque a Europa precisa de comércio livre, mas igualmente justo e com reciprocidade de medidas, sem necessidade de se tornar um “bicho-papão” ou arrogante. A União Europeia é o principal bloco comercial a nível global e tem um excedente relevante em termos da balança agroalimentar. Mas tem igualmente uma fragilidade evidente no panorama geopolítico mundial, a qual tem de saber interpretar. Desde logo na sua relação com a China, em que, por exemplo, é gritante a nossa dependência, sobretudo ao nível dos aditivos, vitaminas para a alimentação animal, ou, noutras origens, a proteína para a alimentação animal e produção pecuária.
É, pois, muito importante não desbaratar este património e inverter alguns erros cometidos pela Comissão anterior, o que significa uma Equipa coesa, de reconhecida capacidade técnica e política, e que legisle ao serviço das empresas e dos cidadãos. Sabendo ouvir e interpretar as diferentes sensibilidades, com bom senso e sem ruturas.
É evidente que os primeiros 100 dias do mandato serão importantes, até porque, do ponto de vista dos agricultores, a simplificação está por fazer, os PEPAC estão a ser revistos, o rejuvenescimento do setor é um imperativo e o problema dos jovens agricultores ou jovens empresários tem de ser objeto de medidas urgentes, tal como a defesa que, em grande medida, só pode estar assegurada se houver segurança e soberania alimentar. É assim evidente que o setor agroalimentar está (tem de estar) claramente implicado nas prioridades da UE.
Temos de conceder, naturalmente, o benefício da dúvida, mas a escolha dos candidatos a Comissários e a atribuição das pastas (Portugal perdeu a oportunidade de ter um Comissário agrícola?), que iremos conhecer na próxima semana, vai permitir uma leitura nas “entrelinhas”.
Com um Parlamento Europeu fragmentado, enfrentamos desafios tão relevantes como o alargamento da União, e as necessárias reformas, a escalada do conflito na Ucrânia e o descontentamento de Estados vizinhos perante as importações ucranianas, sobretudo de cereais. Tudo isto num cenário em que as tensões internacionais se podem agravar, em que se assiste ao avanço dos populistas, e em que se colocam novos problemas relacionados com a imigração, a habitação e a transição energética, com a necessidade de inovação e de tecnologia para o combate às alterações climáticas. Nunca uma Comissão enfrentou tantos desafios ao mesmo tempo, com expetativas tão elevadas. Também por isso, a escolha dos Comissários devia ser ainda mais exigente.
No entanto, neste frenesim mediático que sempre caracteriza um novo ciclo, continuamos sem uma palavra, somos confrontados com um silêncio ensurdecedor da Presidente von der Leyen, no que respeita à entrada em vigor da legislação sobre as cadeias de abastecimento livres de desflorestação (EUDR). Quando vão ser divulgadas as FAQ e definidas as zonas de risco pelas diferentes origens? Como vai funcionar a plataforma para as DDD (Declarações da Diligência Devida)? Quando vai começar a funcionar a Comissão de Acompanhamento com os representantes dos Estados-membros? Numa palavra, face à incerteza jurídica do regulamento para entrar em vigor a partir de 1 de janeiro de 2025, vai ou não ser concedido o pedido de adiamento?
São já incontáveis as exposições, de organizações como a FEFAC, FEDIOL, COCERAL, COPA/COGECA, recentemente dos retalhistas, coligações setoriais, as cartas do comissário agrícola, com o apoio do Conselho Agrícola, incluindo as preocupações manifestadas pelos países terceiros fornecedores, designadamente de soja, mas também de palma ou café. O que é ainda preciso para que a Presidente da Comissão se pronuncie?
Numa altura em que mais um ministro da Agricultura (da República Checa) acaba de solicitar o adiamento da entrada em vigor da legislação, em que reconhecidamente os Estados-membros não estão em condições de assegurar os controlos e em que as empresas aguardam respostas concretas às suas preocupações, surpreende-nos que já se comecem a discutir alterações no diploma, com a eventual inclusão, no futuro, do milho e dos suínos. E porque não, já agora, os terrenos destinados à construção e ao setor imobiliário?
Afinal, em que mundo vivemos? Não é certamente isto que esperamos nos primeiros cem dias quanto mais num mandato de cinco anos. Merecemos mais respeito e, sobretudo, líderes de confiança e com responsabilidade, que assumam as consequências das suas políticas. Precisamos de líderes que compreendam as realidades dos setores e dos territórios e que não governem para uma realidade virtual que gostariam de ter, mas que, para o bem e para o mal, não é a que têm à sua frente.
O impacto económico no caso da soja está feito e em Portugal falamos de aumentos de custos na ordem dos 25 a 30 milhões de euros nos alimentos para animais; serão certamente de milhões no espaço europeu e em breve teremos esses números. Estes aumentos irão penalizar a Indústria, os produtores pecuários e os consumidores. Tudo isto é do conhecimento do Gabinete da Presidente da Comissão. Será que não somos (ou fomos) suficientemente claros?
Portugal entendeu perfeitamente a mensagem e ainda recentemente, num colóquio em Montemor-o-Novo, na EXPOMOR 2024 – uma excelente organização da APORMOR na defesa do mundo rural – o ICNF partilhou totalmente as nossas posições e preocupações, tal como já o tinha feito a DGAV, e o Ministro da Agricultura e Pescas, além da CAP e da CONFAGRI, o que, naturalmente, saudamos. Provavelmente, o próximo Conselho Agrícola vai reiterar o pedido de adiamento, a Presidência da Hungria não vai fazer nada, deixando para o Conselho do Ambiente um pedido formal à Presidente da Comissão, na reunião de 14 de outubro. Demasiado tarde.
Cara Presidente da Comissão Europeia,
Lamento, pessoalmente, a forma como temos sido tratados. Somos organizações credíveis, reconhecidas, com provas dadas em Bruxelas e a nível nacional, estamos envolvidos nos processos de decisão, nos Grupos de Diálogo Civil e noutros fóruns, desde há longos anos, merecemos ao menos uma resposta. Não desta forma, sem aviso prévio.
Vossa Excelência aposta nos primeiros 100 dias. Nós não podemos perder nem mais um.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA
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