Chamam-lhe o “pior dia de sempre”. Foi há dois anos. Há precisamente dois anos. Quando o fogo ardeu e matou e continuou a arder e a matar. 51 pessoas. O homem encarregado de investigar o que se passou e que escreveu um relatório para o Governo tem elogios e a críticas a fazer ao que o Estado e a sociedade civil estão a implementar para que não haja um dia pior que o pior de sempre. E admite que o país está mais bem preparado, apesar de tudo. Domingos Xavier Viegas fala ao Expresso dois anos após o 15 de Outubro. Outubro com “O” grande. De grande tragédia
Passam agora dois anos dos incêndios de 15 e 16 de outubro. O relatório apresentado aponta uma série de recomendações para melhorar a prevenção, a intervenção e o combate aos incêndios. Em dois anos, o que mudou?
As nossas conclusões e recomendações foram complementares com o relatório sobre Pedrógão Grande – aliás, quando se dão os incêndios, estávamos ainda a concluir o primeiro relatório – e, tal como em junho, chamámos à atenção para o que era mais relevante neste incêndios: a perda de vidas humanas. Dedicámos muitas páginas a tentar compreender porque morreram as pessoas. Por um lado queremos que as pessoas se fixem no interior, nas zonas rurais, mas verificamos que muitas vezes não há condições para uma vida normal, digna e segura. Se não lhes oferecemos essas condições não pudemos exigir que haja gente que habite no interior do país e sem isso não é possível sustentar a floresta e os espaços rurais. Essa é a nossa primeira recomendação: inverter esta situação, que é fruto de uma má coordenação do país durante décadas. Não é culpa de Governo A ou B, é algo que se arrasta. A segunda recomendação está também relacionada com a manutenção da segurança das pessoas. Não temos capacidade para evitar acontecimentos destes, aliás, podemos ter incêndios como os de Pedrógão Grande ou os de Outubro cada vez com mais frequência, o que não podemos é aceitar que morram pessoas.
Mas têm sido tomadas medidas para que essa segurança seja garantida?
Sim. Por exemplo, o programa da aldeia segura ou as medidas para a limpeza das matas. Se há alguma coisa que mudou nestes dois anos nos espaços rurais é a sensibilidade das pessoas para cuidarem das áreas envolventes às casas. Não digo que esteja tudo feito mas não podemos negar que o país tem hoje uma cara diferente. Cuidar das construções e zonas industriais ou recuperar a floresta são coisas que vão sendo feitas mas de modo muito lento, em particular a recuperação das áreas ardidas, que me parece muito prejudicada.
Muito lento porque é um processo naturalmente lento ou porque a ação de quem deveria avançar com esse processo é lenta?
Diria que a segunda hipótese. Não ignoro que seja um problema difícil mas creio que não tem havido dinamismo e capacidade para o agarrar como devia e podia ser agarrado. Há um claro desleixo por parte das autoridades e de alguns sectores da Administração Pública em zelar por aquilo que podia ser a gestão florestal e do território.
Foto Ana Baião
Das recomendações que foram propostas, o que há ainda por fazer?
Creio que tudo o que disse não está feito, está ainda a ser começado. Tem de se trabalhar muito mais diretamente com as comunidades de forma permanente e persistente. Não basta fazer cerimónias de entrega de coisas ou simulacros, é preciso criar equipas de trabalho que formem as comunidades e que mantenham a preparação ao longo do tempo – e isso exige recursos. De modo geral, o problema não é de falta de fundos e dinheiro, o problema é sobretudo de falta de capacidade de orientação para usar esses recursos onde devem ser canalizados. Penso que continua por fazer quase tudo, claro que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo mas as poucas coisas que se vão fazendo é preciso fazer bem.
Portanto, algumas das recomendações estão a começar a ser cumpridas…
Exato.
Mas ainda não há nada efetivamente concretizado?
Sim. Mas não há nada acabado até porque não é um processo em que alguém possa dizer ‘está feito, podemos estar descansados e seguros’. É necessário continuar a trabalhar e algumas das coisas já começaram a andar, outras não.
Tem sido um processo mais demorado do que era esperado ou desejável?
Tem havido muito dinamismo e tenho visto uma melhoria grande no sector da intervenção – surgiram novas forças, melhor organização e mais recursos. Há uma muito melhor eficiência no ataque inicial ao incêndios. Mas isto só não basta: se não fizermos algo mais pela estruturação da floresta, pela limpeza, pela mudança de tipologia da floresta, não creio que consigamos ter a batalha ganha. Estamos num ambiente em mudança, com um clima de temperatura crescente e com condições de risco mais elevadas e frequentes.
Um dos pontos referidos no relatório dizia respeito à preparação das empresas e zonas industriais para combater os incêndios. Podia ler-se que as empresas estavam preparadas para combater chamas que começassem no seu interior mas não para reagir a um incêndio que começasse no exterior – havia materiais perigosos do lado de fora dos edifícios, por exemplo. Recomendavam que isso mudasse. Mudou?
Isso foi uma das coisas que mais nos chocou quando fomos para o terrenos, essa falta de preparação. Creio que nas áreas afetadas pelos incêndios houve uma mudança da mentalidade das pessoas e tudo começa a ser feito de maneira diferente. Ainda assim é uma fração muito pequena da realidade do país e julgo que muitas pessoas continuam a fazer tudo como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse incêndios e elas fossem inatingíveis – esta mentalidade é uma das principais mudanças que deve ser feita.
Houve uma profissionalização do combate aos incêndios? Há uma maior profissionalização dos bombeiros e dos quadros de comando, tal como foi recomendado? E já está definido um protocolo nacional, distrital e municipal para atuação em situações de megaeventos?
Julgo que está a aumentar o número de pessoas profissionalmente dedicadas à gestão dos incêndios e na formação também foram dados passos importantes: lançou-se um programa de investigação de incêndios florestais, por exemplo – algo que não existiu nos últimos 20 anos. Mais investigação e conhecimento podem traduzir-se numa melhor preparação dos profissionais e disponibilidade de novas soluções técnicas e tecnológicas. Quanto ao protocolo, penso que está a ser encaminhado. Nos grandes incêndios – felizmente, desde 2017, não temos tido muitos – é notória a melhoria na gestão dos recursos – não tem havido vítimas mortais e os fogos têm tido valores não muito altos de área ardida.
E nos sistemas de comunicação, o que mudou?
Há uma grande preocupação por parte das autoridades para melhorar as comunicações. Por exemplo, estivemos a trabalhar com um dos maiores operadores de telecomunicações para proteger os armários que estão instalados no meio da floresta e podem ser atingidos pelas chamas. Mas há muitas outras soluções a serem procuradas.
TIAGO MIRANDA
Verifica também que há uma maior noção de que nem sempre a evacuação das aldeias é a solução ideal?
Temos defendido essa doutrina: não se deve fazer retiradas grandes das aldeias e deve-se manter as pessoas válidas que queiram ficar e possam defender as casas. Vemos com satisfação que as autoridades estão a incorporar cada vez mais esse princípio, que não é novo e resulta da constatação de que há pessoas que têm capacidade e estão preparadas para defenderem o que é seu. As casas, de um modo geral, são um bom local de refúgio e, quando protegidas, têm maior probabilidade de resistirem.
Isso não implica uma formação para dotar as pessoas de capacidade de autoproteção?
Esse é um trabalho ainda incompleto. Temos estado em colaboração com a Proteção Civil e com as comunidades no sentido de dar formação a aldeões para os preparar melhor: perceberem o comportamento do fogo, os lugares onde as casas podem ser mais vulneráveis, os cuidados a ter na construção e manutenção da habitação e do espaço envolvente. Uma vez mais, há muito mas muito trabalho a fazer.
Imagine que hoje acontecia um incêndio como o de há dois anos. Haveria uma melhor preparação para intervir? Não haveria vítimas mortais?
Aquilo que sabemos dos incêndios de 15 de Outubro é que a intervenção das forças de combate não foi decisiva. Naquele dia tivemos 400 e tal ignições, não havia capacidade para atender cada uma delas. Algumas deram origem a grandes incêndios (nove), cada um deles com 30 mil ou 40 mil ou 50 mil hectares. Nesses incêndios não há nada a fazer. Por mais meios e recursos que tenhamos, há uma enorme dificuldade em intervir e estar presente. O se pode fazer é proteger as pessoas e as casa, evitar males maiores. Muito dificilmente se poderia evitar que os incêndios tivessem aquela dimensão. Admito que se pudessem evitar mortes.
A excepcionalidade da situação faria com que ainda hoje fosse muito difícil controlar o que aconteceu?
Exato. Pelo que vimos e estudámos, aquelas circunstâncias foram muito especiais e o que aconteceu podia ter sido bem pior. Vejo casos em que se evitaram mais vítimas mortais e danos por intervenção das autoridades, das pessoas comuns e do bom senso de muita gente. Tínhamos potencial para ter uma tragédia ainda maior.
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