Na entrevista a Ribeiro Telles que citei recentemente, e que é de Agosto de 2003, há um aspecto que merece atenção, não por ser de Ribeiro Telles, cujo pensamento sobre a matéria é bastante conhecido e pacífico, mas porque os mitos (hoje são inegavelmente mitos, na altura ainda poderiam ser opiniões discutíveis) sobre o mundo rural que lhe estão na base se mantêm vivos, apesar de todo o conhecimento entretanto acumulado.
“O mundo rural foi considerado obsoleto, como qualquer coisa que vai desaparecer. Veja-se o disparate que foi a política de diminuição dos activos na agricultura. Contribuiu para o aumento dos subúrbios, dos bairros de lata, da emigração. Trouxe alguma coisa melhor para a província? Não. Apenas um grande negócio para as celuloses e para os madeireiros. … [os agricultores]foram convencidos de que eram uns labregos. Houve toda uma política de desprestígio do mundo rural tendo por base a ideia de que era inferior ao mundo urbano. Despovoámos os campos e essa gente toda veio para a cidade.“
Quem conhece o contexto do que transcrevi, sabe que na sua origem estão ideias que nesta entrevista não são explícitas, mas que numa outra entrevista, no Correio Real, de Novembro de 2011, são muito claras e explícitas:
“entender o agricultor como verdadeiro guardião dos campos, serras e matas — do espaço rural cuja beleza, equilíbrio e estabilidade geram benefícios de ordem cultural, social e física.Temos de pensar em termos de dignificação do homem e de valorização da terra”.
Esta é a essência do romantismo rural que continua a ser uma linha de pensamento sobre o mundo rural, ainda hoje, e de que as ideias sobre o pagamento de serviços de ecossistema serão a face tecnocrática, admitindo que o parágrafo anterior tem uma face tecnocrática possível.
O problema da ideia romântica de que a vida das pessoas do mundo rural não se guia pelas mesmas pulsões humanas das outras actividades, incluindo as pulsões económicas, mas que existe uma dignidade intrínseca na produção de alimentos que não existe noutras formas de criação de riqueza, é que é um beco sem saída.
Qualquer actividade humana pressupõe consumo permanente de recursos pelo que ou essa actividade gera esses recursos, ou tem de haver outras actividades geradoras de recursos que sustentem actividades que são sobretudo consumidoras de recursos.
Considerar que houve uma política de diminuição de activos na agricultura (activos, na frase em questão, quer dizer pessoas) em detrimento de uma visão menos romântica que reconhece que a evolução do mundo permitiu às pessoas comuns encontrar formas de vida que acharam preferíveis, é considerar que o mundo é comandado por forças poderosas e não pelos milhões de decisões que todos os dias são tomadas por milhões de pessoas à procura de uma vida melhor.
Ribeiro Telles, cujo PPM era caracterizado no tempo do PREC pelo humor da simplificação programática expressa na frase “Os sovietes e o Rei”, que no movimento monárquico me parece que foi dos poucos que não teve hesitações quando foi preciso optar entre liberdade e tradição, ficando sempre do lado da liberdade, que sempre defendeu uma regionalização baseada em dezenas de regiões naturais assentes no municipalismo, acaba por defender o mais feroz centralismo ao deixar-se conduzir pelo romantismo rural que referi: “O Estado não domina totalmente a expansão urbana quando quer, não faz planos gerais de urbanização? Não se devia poder plantar o que se quer porque também não se pode construir o que se quer. Constrói-se mal porque, às vezes, o Estado adormece”.
O que me parece é que esse centralismo a que se chega não é verdadeiramente o que caracteriza o pensamento sobre a dignidade específica do agricultor e do pastor, é apenas uma resposta atamancada ao beco sem saída que o romantismo rural representa: se o que financia a actividade do mundo rural não é a riqueza material criada, como se financia, então?
É verdade que a derrocada do mundo rural tradicional se traduz em perdas de diversidade, seja na maneira de falar, seja na diversidade de pão ou das cozinhas, seja na diversidade das celebrações comunitárias, seja na paisagem, seja na biodiversidade, se quisermos simplicar, na relativa uniformização cultural que caracteriza um mundo urbano globalizado.
É verdade que custa ver morrer toda essa diversidade e ter consciência da perda de vitalidade cultural que representa, e é bom que existam muitos projectos como “A música portuguesa a gostar dela própria” para registar coisas antes que se percam, na esperança de que haja, para elas, um futuro diferente do que pensamos que venha a ser: cultura viva de comunidades em permanente evolução que se transforma na triste cristalização das peças de museu.
Reconhecer a morte de um mundo de que se gosta não é apenas útil para se poder fazer o luto e seguir em frente, é sobretudo útil para evitar a tentação de nos concentrarmos no esforço inútil e dispendioso de tentar reanimar um cadáver.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.