Especialistas do setor do vinho mostram estupeção e convergem nas críticas
É um facto: nos objetivos para os anos 2019-2020 do Programa Nacional Para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) não há, expressa, qualquer menção à retirada do vinho, em consumo moderado, da Roda dos Alimentos, ali previsto desde 2016.
Mas o tema é latente e o receio de que a medida avance é real. Maria João Gregório, a nova diretora do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), assume que o assunto deverá ser discutido em termos técnicos por um grupo de trabalho a criar para o efeito. Invoca o que diz ser “a evidência mais recente” de que “hoje não há qualquer nível de ingestão de álcool que possa ser considerado seguro e sem riscos para a saúde”.
A “Vida Económica” foi ouvir o setor do vinho. Entre a estupefação e a discordância, as opiniões são unânimes: inverter uma recomendação da própria Direção-Geral de Saúde pode ser “no mínimo imprudente”. Até porque “o vinho já não é hoje a bebida alcoólica mais consumida em Portugal”. Acima de tudo, é preciso “discernimento e bom senso”.
O presidente da ViniPortugal não ignora que o Lancet Journal publicou, em agosto de 2018, um estudo que referia não existir nenhum “nível seguro de consumo de álcool”. E que essa conclusão, “profundamente divulgada, mobilizou os ativistas anti-álcool”.
O problema é que esses ativistas anti-álcool viram esta publicação, mas, diz Jorge Monteiro, “não querem ver as publicações mais recentes da mesma revista, onde diversos (não um) investigadores lançam severas dúvidas acerca da metodologia seguida pelo dito estudo publicado em 2018”. E “como sabemos que uma mentira lançada no ar (sobretudo sendo uma má notícia), por mais que a desmintamos, nunca mais será o que era, aí temos o resultado”, diz o Presidente da ViniPortugal comentando as afirmações da Diretora do PNPAS, que revelou publicamente a meados de julho que a retirada do vinho da Roda dos Alimentos deverá ser discutida em termos técnicos.
A “Vida Económica” perguntou a Jorge Monteiro – e, de resto, a todos os especialistas que consultámos para este artigo – se concorda que o vinho seja retirado da Roda dos Alimentos. O Presidente da ViniPortugal foi lapidar: “se concordo?, claro que não!”.
Mas o que verdadeiramente o preocupa “não é a Roda dos Alimentos, mas os princípios que estão por detrás desta atitude”, pois, diz, “é notória a tendência para as medidas simplistas, que mais que resolver os problemas da sociedade criam a ilusão de que os resolvem”.
Jorge Monteiro prefere, pois, “a educação, a consciencialização e a responsabilização do indivíduo, por via de uma atitude mais pedagógica, do que atitudes proibicionistas, que procuram menorizar e desresponsabilizar o cidadão, substituindo-o por um ‘big brother’ qualquer”. E prefere “a sensibilização para o consumo moderado e um consumo responsável” e “uma visão de ‘bem-estar’ do individuo”, mais do que “uma visão absolutista de saúde”. Prefere também “ler, escutar e aprender com investigadores de mente aberta, sem ideias preconcebidas, não fundamentalistas, do que [com] muitos que, quando arrancam, já sabem as conclusões a que vão chegar».
CRVV: o vinho tem “benefícios mais do que provados”
O presidente da CVR dos Vinhos Verdes foi parco nas palavras. Incisivo, porém. Disse à “Vida Económica” que esta proposta “faz parte de uma orientação proibicionista que aposta cada vez mais na imposição de regras e cada vez menos na formação para o consumo inteligente”.
A região do Vinho Verde produziu 759 757 hectolitros de vinho em 2018 e, quanto às vendas, ultrapassou, pela primeira vez, a fasquia dos 50% de exportações, com as remessas para o exterior a atingirem os 64,4 milhões de euros (27 milhões de litros).
Manuel Pinheiro é lapidar: “sendo que o alcoolismo deve ser combatido sem hesitar, pelo contrário, o consumo moderado de vinho não só faz parte da nossa dieta tradicional, mas tem benefícios mais do que provados”. Mais: “a ideia de que as pessoas não sabem distinguir consumo moderado de abuso de álcool é uma menorização da inteligência do consumidor”.
A CVRVV é, pois, “completamente contrária” à retirada do vinho da Roda dos Alimentos. Uma “medida que, aliás, é ilusória, pois se o consumo de vinho em Portugal é de 40 litros ‘per capita’, faria muito mais sentido aceitar que ele existe e fazer formação do que negar a sua existência”.
Arlindo Cunha:
“uma alimentação saudável
não se poder aferir apenas
pelo que vai para o estômago”
O ex-ministro da Agricultura e presidente da CVR do Dão, Arlindo Cunha, adverte que, “ainda recentemente, na publicação da DGS de 2016 “Padrão Alimentar Mediterrânico: promotor de saúde” se afirmava (p. 26) que “a ingestão moderada de vinho tinto parece estar associada, em certas circunstâncias, à redução do risco de doenças cardiovasculares, particularmente devido ao seu teor em compostos bioativos, responsáveis por uma ação antioxidante no organismo humano”. Ou seja, “prevalecia a tese científica de que o consumo moderado de vinho era benéfico para a saúde, devido especialmente “ao resveratrol, um polifenol presente nas uvas a partir das quais se produz o vinho tinto, associado a uma potencial capacidade na prevenção de doenças crónicas e doenças cardiovasculares”.
Ora, “inverter uma política oficial apenas porque surgiu um novo estudo com conclusões contrárias apenas há um ano atrás, parece-me no mínimo imprudente”, diz Arlindo Cunha. Depois, “importa considerar que o vinho já não é hoje a bebida alcoólica mais consumida em Portugal e que é cada vez mais preocupante a escalada de bebidas à base de destilados nas camadas mais jovens”.
Não falando do facto de “uma alimentação saudável não se poder aferir apenas pelo que vai para o estômago”. Para Arlindo Cunha, “o fisiológico não pode ser separado do espiritual, do cultural, nem da envolvente local”, diz, citando o relatório da DGS quando fala em “alcançar o sabor desejado e um maior grau de satisfação e envolvência com as pessoas que partilham a mesma refeição” ou, ainda, que “um padrão alimentar que promove a produção local, as espécies e raças autóctones, o saber produzir e comer locais é também um forte aliado das economias locais e do emprego”.
Para o presidente da CVR do Dão, região que em 2018 apenas produziu 177 676 hectolitros de vinho, menos 42,9% (134 mil hectolitros) que na vindima anterior, é necessário “discernimento e bom senso”. É que, “num país em que a vitivinicultura ocupa 200 mil hectares de superfície agrícola, envolve aproximadamente o mesmo número de famílias, representa 11% da produção agrícola total e exporta anualmente cerca de 800 milhões de euros, não há dúvidas sobre a importância do setor na economia dos diferentes territórios e na do país no seu conjunto”.
CNA: “induzir a substituição [do vinho] pelo consumo de outras bebidas alcoólicas”
A CNA “não é a favor do consumo, em excesso, de qualquer bebida alcoólica e, muito menos, corrobora que ‘beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses’, como dissera Salazar no Estado Novo”.
Para João Filipe, da Direção da CNA e representante da Confederação no Conselho Consultivo do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV), “o vinho, até há bem pouco tempo, derivado da sua composição, bebido com moderação e às refeições principais era considerado benéfico para a saúde”. Portanto, “não se percebe esta inversão, que pode até resultar numa tentativa de discriminação do produto vinho”.
É um facto que “o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, no geral, é um problema que extravasa qualquer relação com a roda dos alimentos e configura, sem dúvida, um problema social”.
No que se refere ao vinho, “também o consumo em Portugal aumentou” no último ano (2018), “baseado numa avaliação empírica, mas corroborada por vários agentes do setor” e que se deve, por um lado, “ao crescimento do turismo no país, cujos visitantes apresentam preferência, dentro das bebidas alcoólicas, pelo consumo de vinho de origem nacional e, também, pela compra para levar”. Por outro, diz o dirigente da CNA, também se deve “à alteração dos hábitos de consumo, com a proliferação da venda de vinho a copo, que há uns anos praticamente não existia”.
João Filipe tem uma certeza: “a referência na roda dos alimentos mediterrânica ao consumo moderado de vinho às refeições principais não se reflete no aumento do consumo”. Quando muito, diz, “a sua ausência poderá, por omissão, induzir a sua substituição pelo consumo de outras bebidas alcoólicas, algumas até nocivas para a saúde”.
Eduardo Oliveira e Sousa (CAP): “o vinho é uma bebida milenar”
O presidente da CAP faz questão de frisar que “quando se fala em consumo de álcool não está em causa especificamente o vinho”. Sendo embora uma bebida alcoólica, ela “tem caraterísticas organoléticas que muito o diferenciam das restantes bebidas”. Mais: “o vinho é uma bebida milenar, que tem vindo a acompanhar a evolução de todas as civilizações no mundo”. É, pois, “um elemento fundamental da dieta mediterrânica, associada a hábitos saudáveis e a uma especificidade agroalimentar que nos orgulha no contexto europeu e mesmo mundial”.
Por outro lado, diz o presidente da CAP, “estando o consumo moderado de vinho incluído na roda mediterrânica dos alimentos desde 2016, com o apoio da Medicina, não se compreende que razões possam ter surgido para que, neste curto período, a situação se altere tão profundamente”.
Miguel Anaya (Casa do Douro): “introdução de uma nova moda ‘politicamente correta’”
A Região Demarcada do Douro (RDD) também não ignora a possível retirada do vinho da Roda dos Alimentos. Miguel Anaya, Vice-Presidente da Casa do Douro – Federação Renovação do Douro, refere que “o que se está a passar é a introdução de uma nova moda ‘politicamente correta’ instituída a partir do estudo dos fatores de risco levado a cabo em 195 países e que culminou num estudo global de 2016, com reflexo no artigo da revista LANCET de agosto de 2018”.
Porém, diz, “o título do artigo científico é apenas de que não existem evidências de que o consumo de álcool – e não do vinho em concreto – melhore a saúde”. Ou seja, “o que resulta das conclusões refere-se unicamente ao consumo excessivo de álcool enquanto potencial causa associada a problemas de saúde, bem assim como ao crime e à violência”.
Miguel Anaya acha “curioso” que a proposta para “evitar” o consumo de álcool “é exatamente a que melhor contribuiria para o incremento do preço das produções vitícolas, como o é o aumento do preço do produto vínico enquanto condição para o seu não consumo”. De qualquer forma, diz o dirigente da Casa do Douro, “apenas o empolamento de uma questão que sequer se encontra criteriada nas opções imediatas da DGS poderá prejudicar a manutenção do vinho enquanto parte integrante das opções alimentares saudáveis em Portugal”.
Os dados do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) referem que a produção de vinho do Porto e DOC Douro na campanha 2018/2019 se fixou nos 1 259 683 hectolitros (1 448 874 hectolitros na campanha 2017/2018). Na próxima vindima, as previsões da Associação de Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID) apontam para uma produção no Douro de entre 263 mil a 288 mil pipas de vinho (+ 23% face à média da colheita dos últimos cinco anos).
Não obstante, e face sobretudo às quebras nas exportações de vinho do Porto para o Reino Unido (cerca de 23%), o Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) deliberou, em finais de julho, que a RDD apenas vai transformar 108 mil pipas de mosto em vinho do Porto este ano (menos oito mil pipas face à vindima anterior).
Para a realização deste trabalho, a “Vida Económica” também contactou Isabel Marrana, diretora executiva da Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP). Não enviou qualquer opinião.
TERESA SILVEIRA teresasilveira@vidaeconomica.pt, 14/08/2019