Nas 14 cantinas da Universidade de Coimbra consome-se, por ano, cerca de 20 toneladas de carne de vaca. O reitor anunciou a 17 de setembro, na cerimónia de boas-vindas ao novo ano letivo, que vai banir a oferta de carne de bovino das ementas a partir de janeiro de 2020. Um gesto “simbólico”, em nome da “emergência climática”, que visa diminuir aquela que diz ser “a fonte de maior produção de CO2 que existe ao nível da produção de carne animal”. A medida é polémica e passível de ser rebatida. É que Amílcar Falcão esqueceu que é preciso olhar para o ciclo completo de produção animal e calcular o chamado ‘Life Cycle Assessment’ e ainda ignorou o disposto na Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas 2020 (ENCPE 2020). Um documento que tem como objetivo ajudar os organismos públicos na aquisição de produtos, serviços e obras com impacte ambiental reduzido.
Na Universidade de Coimbra, a partir de 2020 a carne de vaca será substituída por “outros nutrientes que irão ser estudados, mas que será também uma forma de diminuir aquela que é a fonte de maior produção de CO2 que existe ao nível da produção de carne animal”, anunciou o reitor à comunidade académica.
Amílcar Falcão garante que a decisão foi ponderada, reconhecendo que a carne biológica ou certificada poderia ser uma alternativa, mas que as regras de contratação pública condicionam as opções. “As universidades não podem ir ao talho comprar a carne de melhor qualidade que lá existe. Temos de comprar carne de acordo com as regras de contratação pública. A melhor oferta que tivermos é a que temos de comprar”, justificou.
Ora, não é exatamente assim. As entidades públicas não só não estão impedidas de comprar carne biológica ou certificada ou de raças autóctones e com baixa pegada ambiental como é recomendável que o façam, seguindo os critérios da contratação pública ecológica (CPE) no âmbito da Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas 2020 (ENCPE 2020). Um documento da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), revisto em março deste ano, que visa ajudar os organismos públicos na aquisição de produtos, serviços e obras com impacte ambiental reduzido.
As metas estão traçadas. Preveem que a aquisição de bens e serviços contemplados na ENCPE 2020 pela Administração direta e indireta do Estado inclua 60% de critérios ambientais em 2019-2020 (55% em 2017-2018) e que, no Setor Empresarial do Estado, essa percentagem atinja os 40% no mesmo horizonte temporal (35% em 2017-2018). As mesmas percentagens aplicam-se ao montante financeiro associado a procedimentos pré-contratuais públicos de aquisição de bens e serviços contemplados na Estratégia.
É certo que a utilização de critérios ambientais nas decisões de compra é voluntário, mas estamos perante recomendações públicas aplicáveis às frutas e legumes, leguminosas, arroz, produtos de aquicultura e de pesca, carne, ovos, laticínios, bebidas e azeite e que é desejável sejam seguidas pelas entidades contratantes. As universidades, por exemplo.
“Aquisição de produtos animais conformes com normas rigorosas de bem-estar animal”Vejamos o que consagra a ENCPE 2020 quanto aos critérios de contratação pública ecológica.Desde logo, não prevê a abolição da carne, de bovino ou outra. Recomenda é que, para produtos alimentares e serviços de catering, “nos processos de aquisição que envolvam entregas de quantidades significativas de alimentos, deverá ser tida em consideração a otimização ambiental de rotas e horários de entrega”. Por outro lado, “os veículos a utilizar na prestação do serviço de catering deverão ser eficientes em termos ambientais”.
Dentro dos critérios das compras públicas ecológicas, as entidades também devem privilegiar a “aquisição de alimentos produzidos através de práticas de produção integrada”, de “produtos de aquicultura e de pesca produzidos ou capturados de forma sustentável”, de “produtos animais conformes com normas rigorosas de bem-estar animal”, de “produtos da época” e dos “produtos a granel”. Isto, para além da utilização de talheres, pratos, copos e toalhas de mesa reutilizáveis ou de materiais com maior reciclabilidade, de produtos de papel ecológicos, da recolha seletiva de resíduos e formação do pessoal e da minimização da utilização de produtos químicos perigosos e utilização de produtos ecológicos de limpeza e de lavagem da louça.
Nas especificações técnicas dos critérios de seleção para a compra de produtos alimentares, a ENCPE 2020 aponta para que “no mínimo em um grupo específico de produtos alimentares” a fornecer, tais como frutas e legumes, leguminosas, arroz, produtos de aquicultura e de pesca, carne, ovos, laticínios, bebidas e azeite, uma percentagem, não definida, deve ser “proveniente de práticas de produção integrada”. Do mesmo modo, uma percentagem dos mesmos produtos, não definida, “deve ser proveniente de produção biológica” e uma outra percentagem, igualmente não definida, “deve possuir denominações de origem e das indicações geográficas”.
Quanto à carne, a ENCPE 2020 recomenda que uma percentagem de carne “deve ser proveniente de raças autóctones”. Para tal, “basta que o fornecedor apresente certificado, emitido pela entidade certificadora, que comprove a certificação dessa carne”. “Estranheza”, “perplexidade” e “profunda indignação e preocupação” do setor agropecuárioO anúncio do reitor agradou à Associação Académica de Coimbra (AAC), cujo presidente, Daniel Azenha, vê a medida como “altamente arrojada” e “importante na consciencialização do meio académico”. Irritou, contudo, os produtores de carne e leite, as confederações de agricultores e as estruturas associativas ligadas à agropecuária.
A CAP – Confederação dos Agricultores de Portugal foi a primeira a reagir. Mostrou “profunda perplexidade”, falando de “decisões infundadas, baseadas em alarmismos incompreensíveis”, para mais “tomadas num contexto universitário, espaço de liberdade e de conhecimento”. Frisou, aliás, que as pastagens biodiversas onde pastam os bovinos “fixam mais toneladas de CO2 do que aquelas que são emitidas” e que “a redução das importações e o desenvolvimento da agricultura e da produção nacional contribuirá para a captura de carbono e a diminuição da pegada ecológica”, ainda “reduzindo o saldo da balança comercial”.
A CNA – Confederação Nacional da Agricultura mostrou “estranheza crítica”, falando de “precipitação” e, até, de “extremismo” do reitor, que “ignora os impactos positivos da produção de carne de vaca para a economia local, regional e nacional e para o ambiente e recursos naturais”, ao mesmo tempo que “ajuda a fixar populações” e a “praticar culturas como prados e silagens que retiram da atmosfera o Anidrido Carbónico – CO2”.
A FENAPECUÁRIA – Federação Nacional das Cooperativas Agrícolas de Produtores Pecuários, membro da CONFAGRI, manifestou “profunda indignação e preocupação”, “repudiando-as veementemente pela falta de rigor e manifesta demagogia”.
A APROLEP – Associação dos Produtores de Leite de Portugal fez “veemente protesto”, dizendo ser “incompreensível que o reitor de uma universidade com 700 anos de história queira banir um alimento com milhares de anos e que terá contribuído para o desenvolvimento do cérebro dos nossos antepassados”. Lembrou, até, uma declaração recente do “respeitado patologista Sobrinho Simões” quando disse que “ficámos espertos porque comemos carne”.
André Magalhães, da Terra Maronesa, projeto de valorização da raça autóctone Maronesa, escreveu uma carta aberta ao reitor. Sublinhou que, “desde a publicação pela FAO, em 2006, do relatório “Livestock’s Long Shadow: Environmental Issues and Options”, que a pegada ecológica e as emissões de gases de estufa (CO2 + CH4) da produção animal “têm sido objeto de um amplo escrutínio científico”. E que dele emerge “uma importante conclusão”: “os sistemas de produção animal não são idênticos e o consumo de carne nem sempre está associado a uma pegada ecológica de sinal negativo”.
Fez questão de esclarecer o reitor que “os novilhos engordados a milho e soja ou nas pastagens da América do Sul têm custos ambientais devastadores” e que, “para além da eructação de gases de estufa, passam pela destruição da floresta tropical amazónica, a aplicação de quantidades maciças de fertilizantes fosfatados (um recurso não renovável) e a emissão de CO2 de origem fóssil através do transporte de animais e carnes por via terrestre a longas distâncias”.
Já a produção de gado Maronês, raça bovina autóctone com solar na Serra do Alvão e montanhas limítrofes, é “amiga do ambiente, assente na maximização do bem-estar animal” e “a maior parte dos alimentos animais é gerada no monte ou nos lameiros, um habitat rede natura 2000” com “substituição de ração pela forragem”.Deixou, por fim, uma sugestão ao reitor de Coimbra: “em vez da exclusão da carne bovina, integre o consumo de carne Maronesa no sistema de cantinas da Universidade”.
TERESA SILVEIRA teresasilveira@vidaeconomica.pt, 03/10/2019