É único e já chegou a ser o vinho número um do mundo, o mais caro. A mais antiga garrafa, um recorde mundial, é de 1679. Foi vinho de imperadores e reis, escritores, políticos e presidentes. Hoje está sob “pressão demográfica”: a Madeira está a perder terrenos de vinha.
Quem, distraído (e nem precisa de ser muito), passar pelo número 28 na Avenida Arriaga, no centro do Funchal, logo ao lado do jardim municipal, poderá não perceber que o que resta do antigo mosteiro do século XVII – que foi “hospital, prisão, quartel, tribunal e asilo” -, adquirido em 1840 pela família Blandy, alberga cascos e cubas, alguns com mais de um século, com madeiras raras e hoje proibidas, como o cetim do Brasil – “você olha para isto e parece uma coisa nova, mas tem 128 anos” -; vinhos antigos, raros e caros, alguns de 1882; cartas de agradecimento de Winston Churchill e de Dwight Eisenhower. Alberga também armazéns de basalto e madeira com vários séculos, que parecem “os interiores de um tombadilho de uma nau”; moedas Blandy e Cossart, que o poder régio autorizou; “as mamas das meninas”, armazéns nos andares de cima onde os tanoeiros “vinham para as verem despir-se [as freiras] que lá ao fundo é o inferno porque era o lugar mais distante e havia que carregar os cascos às costas”; “borrachos”, de pele de cabra, de 100 litros de mosto, que os “borracheiros carregavam nas costas”.
Por lá “residem” memórias dos “piratas argelinos que diziam ser franceses”; memórias dos bucaneiros portugueses, franceses, argelinos que pagos “transformavam-se em corsários” quando os navios “vinham aguar aqui”; rótulos “normais nos anos 50”: a silent woman cor-de-rosa e sem cabeça, e o “instrumento”, como diz de si próprio, Francisco Albuquerque, enólogo da Madeira Wine Company, Wine maker of the year em 2008, 2009 e 2010 – distinção rara e até agora única atribuída pelo Internacional Wine Challenge.
A história de que Dostoievski, Tolstoi, Shakespeare, Napoleão, os founding fathers dos Estados Unidos e, em particular, Thomas Jefferson fazem parte, assim como os refinados “frasqueiras” – que a designação vintage pertence ao vinho do Porto -, as antigas adegas Blandy e o serpentear por entre escadas e corredores, pátios e armazéns, abafa de tão intensa a “extrema preocupação” com o “futuro”.
A “bebida mais civilizada do mundo”, diz Francisco Albuquerque, contrariando a tese de Pasteur de que era a “bebida mais higiénica do mundo”, está “em risco”. O madeirense, enólogo de renome internacional, académico reputado, não esconde, bem pelo contrário, a “grande preocupação”.
“Neste momento estamos a atravessar um período muito preocupante. Temos uma enorme pressão demográfica sobre os terrenos agrícolas. Há muita gente a investir em casas de férias, sobretudo gente com os visas gold, que chegam aqui e compram terrenos por valores incríveis. Está a perder-se terreno de vinha”, alerta.
A concorrência “desleal”, diz, é “também um problema social” difícil de resolver. “Estão a vender-se terrenos com vinha a meio milhão de euros!” O sorriso que manteve enquanto percorremos as adegas quebra-se. “E quem sou eu para chegar a um agricultor e pedir-lhe que não venda, que continue a produzir uvas. Chega lá um estrangeiro e bate-lhe 500 mil, 600 mil, 700 mil euros.”
Se a “valorização louca e os valores incríveis” oferecidos por estrangeiros são difíceis de travar, mais “complicado” – até porque “são de cá” – é a “valorização dos terrenos com a volta dos emigrantes, que começaram a ocupar aqueles terrenos que tinham deixado em procuração. E começam a construir no meio das vinhas. As casas vão […]