Se não atacarmos de frente o modelo de administração da política agro rural, fazendo convergir os serviços regionais, as escolas superiores agrárias e as escolas profissionais agrícolas, as associações empresariais e socioprofissionais, numa plataforma comum de colaboração, tudo isto é um enorme exercício de dissimulação e hipocrisia políticas.
As imagens dos fogos nas aldeias serranas e, agora, os efeitos sociais da pandemia, na sua imensa crueza, de pessoas, vilas e aldeias em isolamento, abandono e pobreza, devolvem-nos aquilo que eu costumo designar como o “rural tardio português”, um universo pleno de realidades contraditórias acerca do nosso passado, presente e futuro e do que, geralmente, entendemos por tradição e modernização do nosso mundo rural.
Num tempo de aceleração tecnológica e digital sem precedentes, pergunto-me se será, ainda, possível definir um novo contrato de compromissos-responsabilidades-benefícios perante a urgência de atender ao nosso rural tardio, que seja uma garantia ética e política firme para com os nossos territórios e concidadãos mais desprotegidos, muito mais do que uma promessa retórica de medidas de política de valorização do interior.
Ao longo do século XX fomos acumulando inúmeras contradições em redor do binómio tradição-modernização que fizeram prolongar, mais do que deviam, o rural tardio português. No entanto, passados mais de 40 anos sobre a revolução de abril este “vício do sistema” continua a fazer-nos companhia. Façamos uma breve viagem aos “vícios e promessas” do conservadorismo português em matéria de administração rural.
- A polarização urbano-rural: uma dicotomia embaraçosa
Uma dicotomia embaraçosa é o mínimo que se pode dizer a propósito da polarização urbano-rural. Estão, ainda, por apurar os malefícios que esta polarização causou aos territórios rurais, em geral, e às zonas agrícolas desfavorecidas, em particular. Os zonamentos da chamada política urbanística, os terrenos urbanizáveis e expectantes, substituíram o planeamento agrário, biofísico e paisagístico, os espaços deixaram de comunicar entre si, a rede urbana desequilibrou-se e invadiu os solos agrícolas, malbaratando um recurso escasso que tem hoje um custo de reposição elevadíssimo.
- Das funções nobres às funções pobres: o fim da extensão rural
O mercado, o associativismo de ocasião, os serviços de assistência técnica, a consultadoria, substituíram a velha administração extensionista e paternalista. O processo produtivo segmentou-se. A especialização conduziu à fragmentação das disciplinas de vocação rural. Os serviços passaram, gradualmente, do front office para o back office. As funções de controlo e inspeção tomaram a dianteira por virtude da aplicação da política agrícola comum. A conceção, o planeamento e a logística própria das ações de extensão rural foram relegados para plano secundário.
- O conservadorismo agro profissional e o corporativismo do mundo rural
A falência do triângulo associações-universidades-administração foi fatal para a modernização do nosso mundo rural. Sem esta associação falharam as tarefas de programação, planeamento e implementação das atividades de investigação-extensão-ação. Com honrosas exceções. O campo ficou aberto para o domínio da indústria e do comércio agroquímicos sobre a agricultura, assente na superioridade esmagadora do saber técnico sobre o saber tradicional. Uma mistura perigosa de dirigismo associativo, de funcionarização administrativa e de acomodação científica tornou tudo mais difícil.
- O conservadorismo da política pública: a prioridade às taxas de execução financeira dos programas
Há muitas formas de conservadorismo da política pública, uma delas é substituir a qualidade e a sustentabilidade dos projetos pelas taxas de execução dos programas para manter o estatuto de bom aluno. Outra forma de conservadorismo é não diferenciar os instrumentos de política, o que tem como consequência a imposição de custos de formalidade excessivos e a segregação das micro e pequenas explorações agro rurais por via da normalização tecno-burocrática. Outra forma, ainda, é a forte dependência do movimento associativo dos financiamentos públicos, o que lhes retira margem de liberdade e alguma ousadia para inovar a sua relação com os associados e o território.
- Os discursos difusos e confusos sobre os vários agros em agenda
Em períodos de transição, como este que vivemos, há sempre vários discursos sobrepostos sobre o futuro do mundo rural. Falamos dos agros e da sua articulação espacial e territorial: o agroalimentar, o agroflorestal, o agroambiental, o agro conservacionista, o agroenergético, o agrorecreativo, o agropaisagístico. Como é que todos estes agros convivem e comunicam entre si, como articulam os seus efeitos de aglomeração e capilaridade, na exata medida em que é preciso pôr ordem no mapeamento do espaço rural que eles configuram. Sem planeamento adequado e uma pequena revolução na cultura organizacional da administração rural tudo continuará como dantes.
- Uma administração direta da infraestrutura ecológica e biofísica regional
Nesta linha de raciocínio, uma das tarefas primordiais da nova administração agro rural é a administração direta de uma infraestrutura ecológica e biofísica regional e, bem assim, os serviços ambientais e de ecossistema que dela derivam, o que não invalida que não se possam estabelecer parcerias ou contratos público-privados para o mesmo efeito. Trata-se de restabelecer, tanto quanto possível, a energia vital dos ecossistemas locais e regionais para, a partir dessa regeneração, reiniciar novas atividades económicas. No mesmo sentido, os serviços ambientais e os serviços de ecossistema podem constituir uma fonte de receita com interesse para os produtores.
- Uma administração indireta da matriz energética agro rural
Uma tarefa prioritária da nova administração agro rural, em íntima relação com a infraestrutura ecológica, é o redesenho da matriz energética local e regional. Trata-se de uma área da maior importância para o futuro sustentável do mundo rural, a requerer, por exemplo, uma forte ligação entre a investigação