O coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) é um dos exemplos mais fascinantes – e paradoxais – de conservação e gestão na Península Ibérica. Esta espécie-chave dos ecossistemas mediterrânicos alimenta predadores icónicos como o lince-ibérico e a águia-imperial, ao mesmo tempo que, em certos locais, gera prejuízos na agricultura. A dualidade entre escassez e sobreabundância traduz-se num desafio técnico e social que a gestão tradicional nunca soube resolver de forma integrada.
É neste contexto que se destaca o projeto LIFE Iberconejo. Financiado pela União Europeia, o projeto criou as bases para um novo paradigma de governança e gestão transfronteiriça da espécie, envolvendo não apenas organizações ligadas à conservação da natureza, mas também agricultores, caçadores, administrações públicas e cientistas. Esta aliança, que culminou na formação do Comité Ibérico de Coordenação do Coelho-Bravo (ERICC), é um exemplo raro e necessário de como as soluções de conservação têm de nascer da participação e da partilha de responsabilidades.
Ao longo do projeto, foram desenvolvidos e testados protocolos comuns de seguimento populacional, identificadas 28 medidas de gestão e conservação do coelho-bravo e recolhidas mais de 80 práticas de fomento e prevenção de danos, sempre com um rigor científico que legitima cada intervenção no terreno. Os resultados falam por si: uma visão integrada e baseada em evidências para lidar com populações escassas ou sobreabundantes, sempre com o equilíbrio ecológico e socioeconómico em mente.
Importa sublinhar que esta abordagem prática e colaborativa contrasta de forma gritante com as visões mais economicistas que, por vezes, tentam descredibilizar a necessidade de projetos como o LIFE Iberconejo. Num momento em que alguns setores na União Europeia questionam a continuidade e o financiamento dos projetos LIFE, é fundamental lembrar que são precisamente estas iniciativas que conseguem traduzir as retóricas políticas de “conservação da biodiversidade” e “exploração sustentada de recursos” em resultados reais e monitorizáveis.
Mais do que um catálogo de boas práticas, o LIFE Iberconejo representa um modelo replicável e uma mensagem política clara: sem este tipo de projetos, a conservação de espécies como o coelho-bravo – com toda a complexidade e importância que representa – não passa de discurso de intenções. A resiliência dos nossos ecossistemas e a convivência equilibrada entre fauna silvestre e atividade humana dependem desta continuidade.
Por isso, defender o LIFE Iberconejo e projetos similares é, hoje, uma urgência que transcende a própria espécie. É uma chamada a manter vivos os espaços de diálogo e as pontes entre interesses aparentemente divergentes, e a reconhecer que o futuro da biodiversidade europeia passa, necessariamente, por este tipo de agenda comum. Não podemos permitir que se tornem vítimas de cortes cegos ou de políticasque não compreendem a complexidade das relações entre natureza e sociedade.
A conservação de espécies e habitats exige diálogo, inovação e compromisso. Projetos como o LIFE Iberconejo demonstram que é possível conciliar interesses diversos e encontrar soluções que beneficiam pessoas e natureza. O futuro da biodiversidade e funcionamento dos ecossistemas, fundamentais para a sobrevivência e bem estar humano, dependem desta coragem de cooperar e de um investimento contínuo. Que esta experiência sirva de inspiração para todas as iniciativas de conservação que ainda estão por vir.
Vasco Silva
Coordenador de Florestas e Biodiversidade da WWF Portugal