Se dúvidas existissem de que a França pretende relançar a sua liderança na Europa, ocupando o vazio da saída da Chanceler Angela Merkel, elas ficariam esclarecidas com o slogan da presidência francesa da União Europeia (UE) para este semestre. Pese embora se confronte com eleições presidenciais em abril, França pretende impulsionar a Europa para um ponto de viragem com o mote “Recuperação, Força e Sentido de Pertença”.
Este sentido de união, de “ser europeu” – elemento de diferenciação numa conjuntura complexa (e perturbadora) à escala mundial, com tensões e novos alinhamentos geoestratégicos – marcou claramente o discurso de boas-vindas do Presidente Emmanuel Macron, salientando este que “vivemos um momento europeu”, e que, perante os desafios da economia, da afirmação das potências hostis, das alterações climáticas, e dos impactos da pandemia, “a melhor resposta é europeia”.
Este discurso marca, em nossa opinião, a vontade dos franceses em recuperarem a liderança na Europa e da Europa, sem deixarem, contudo, de piscar o olho à Alemanha. Os seus desígnios marcarão a agenda política do Velho Continente na próxima década: alcançar uma soberania europeia, ser autossuficiente, combater as alterações climáticas e promover um desenvolvimento sustentável, impulsionando, as metas definidas na Estratégia “Do Prado ao Prato”.
No entanto, a maior ambição tem a ver com a necessidade (urgente) da aplicação de normas comuns aos produtos europeus e aos importados de Países Terceiros, através das denominadas “mirror clauses” ou cláusulas-espelho. Estes, devem sujeitar-se aos mesmos requisitos específicos que os da UE ao nível da segurança alimentar e da proteção ambiental (e social?), à maior escala possível, o que inclui o bem-estar animal e os métodos de produção.
Esta reciprocidade não deixará de ter impacto nas trocas comerciais, numa altura em que o agroalimentar europeu lida com uma diminuição de exportações de produtos animais, caso da carne de porco, e está a braços com o peso relevante que as importações de matérias-primas para a alimentação animal assumem. Caso concreto dos cereais e oleaginosas, destacando-se o milho e a soja.
A presidência francesa pretende lançar os trabalhos para a regulamentação das importações livres de desflorestação, num dossiê vital para o nosso Setor, esperando-se que a soja não seja diabolizada e se reconheça o trabalho que a Indústria da alimentação animal tem vindo a fazer com a soja responsável, à luz das exigências do seu caderno de encargos, e que já representa cerca de 40% do aprovisionamento. Também o foco em áreas de nulo ou baixo risco de desflorestação, com um peso de 78% do abastecimento de soja na UE deve ser reconhecido.
Sendo conhecida a pressão de muitos países da UE para a redução do consumo de soja, alguns deles, como França ou Áustria, que já definiram planos de desenvolvimento de proteínas bastante ambiciosos, com apoios às culturas proteicas – recorde-se que Portugal vai ter na nova PAC, ajudas ligadas para as proteaginosas – é igualmente importante que se mantenha um fluxo de importações em aberto, que a legislação final seja equilibrada e que não contribua para acrescentar mais custos aos que infelizmente já existem, pondo em causa a competitividade do setor.
Uma vez mais aqui relembramos que não existem alternativas sustentáveis à soja no curto prazo, pela ausência de oferta ou de escala, a não ser para determinados nichos de mercado.
Outros temas sensíveis da presidência francesa não deixarão de ser a agricultura de baixo carbono, que começa a ganhar particular atualidade em França, ou o sequestro de carbono em solos agrícolas, desenvolvimentos importantes e que podem melhorar a imagem do setor enquanto responsável pelas emissões de GEE. O Mecanismo de Ajustamento Carbónico Fronteiriço irá ser adotado nos próximos meses e pretende nivelar o preço do carbono entre os produtos nacionais e as importações, assegurando que os objetivos climáticos da UE não são prejudicados pela deslocalização da produção para países com políticas menos ambiciosas.
Teremos ainda o plano de redução da utilização de pesticidas que deverá ter a capacidade de promover e implementar um aumento da utilização de alternativas, de forma a garantir que nenhum agricultor possa ficar sem uma solução na proteção das culturas.
Finalmente, pretende-se rever a promoção da produção agrícola na UE, em coerência com o Pacto Ecológico Europeu, e lançar um debate sobre a resposta da Europa à luta contra a gripe aviária, altamente patogénica. Em cima da mesa estará, ainda, a análise dos Planos Estratégicos da PAC que a presidência pretende acelerar, tendo em conta as especificidades e recomendações da Comissão, para que seja possível a sua implementação a partir de janeiro de 2023.
Apresentadas estas ambições e linhas estratégicas para os próximos seis meses, o Conselho Agrícola de 17 de janeiro revelou que esta agenda pode ser travada pela conjuntura económica que decorre do ponto de situação dos mercados agrícolas.
São por demais evidentes as preocupações da esmagadora maioria dos Ministros da Agricultura com o impacto que se prevê no agroalimentar, do aumento dos custos da energia e dos inputs como as sementes, os fertilizantes, os fitofármacos e, também, dos alimentos para animais. Se nada acontecer, muitos setores poderão vir a ser inviabilizados, teremos certamente falências, agravam-se os riscos de inflação.
Em Portugal, a situação já é insustentável.
Apesar das pressões, que se arrastam desde a presidência portuguesa e se multiplicaram com a liderança da Eslovénia, o Comissário da Agricultura resiste, mas não convence os decisores políticos e muitos menos a França. Fala de recuperação de preços, de que os agravamentos, mais cedo ou mais tarde, serão transferidos para os consumidores. É uma realidade, mas são insuficientes e o tempo urge.
A República Checa, que vai assegurar a presidência no segundo semestre, voltou a insistir na degradação da conjuntura da carne de suíno, apoiada pela maior parte dos Estados-membros. A Comissão tem de tomar medidas no quadro do Regulamento da OCM e não são excluídos apoios diretos. Se da UE ou via ajudas nacionais é uma questão que se coloca. Contudo, se o apoio não for à escala europeia, mais uma vez seremos perdedores.
Para além de organizações europeias como a FEFAC, ou nacionais como a IACA, muitos deputados do Parlamento Europeu intensificam também esta pressão, pelo que são de esperar desenvolvimentos no muito curto prazo, numa altura em que ocorre a primeira reunião do Grupo de Trabalho do Mecanismo Europeu de Preparação e Resposta à Crise de Segurança Alimentar (EFSCM). Neste fórum será discutida a implementação do Plano de Contingência.
Aqui chegados, vale a pena recordar declarações recentes do Ministro da Agricultura alemão, dos Verdes, de que é necessário valorizar a alimentação para que os produtores agrícolas, seja qual for a sua dimensão, possam ser viáveis na adaptação às exigências ambientais e da sociedade, o que exige avultados investimentos.
Infelizmente, o que parece evidente é que a via do mercado está a ser claramente insuficiente, sendo obrigação da Europa reforçar as políticas públicas para a transição.
É isso que, em nossa opinião, garante a autossuficiência, a pertença, a união, a força e consubstancia o slogan da presidência.
A menos que o Presidente Macron tenha outra interpretação do que é ser europeu. E essa não será certamente a que nos identifica!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral