O especialista em gestão de água e também ex-secretário de Estado de Cavaco Silva defende que o problema da seca não se resolve com barragens, nem com transvases. Mas admite que é uma questão política e que é preciso tomar decisões que não terão efeitos de um dia para o outro.
Foram anunciadas restrições de água para o Algarve por causa da seca. Concorda?
Primeiro, seca é uma coisa, escassez é outra. Seca quer dizer que há falta de chuva. Foi criada em 2017 uma comissão interministerial de seca e desde aí até agora tem reunido, infelizmente, com muita frequência. No passado havia seca de dez em dez anos, desde 2017 temos seca todos os anos, o que nos revela que teremos de considerar esta nova normalidade e se calhar temos de tomar algumas medidas de fundo. Agora não é o momento para isso, porque estamos num momento de seca. Primeiro, para já, temos de impor algumas restrições, em determinadas zonas do país, uma vez que há medidas que são diferentes de região para região. Neste momento e, em particular, há alguma preocupação com o Algarve. E porquê? Porque há setores que precisariam de mais água para continuarem a sua atividade, mas como as reservas são insuficientes foram anunciadas algumas restrições. É habitual quando há estas situações em avançar com restrições que poderão ser agravadas ou reduzidas em função da quantidade de água que existe. Em Portugal há uma prioridade absoluta, que é o abastecimento público que tem de ser garantido e como no Algarve há o receio de que faltará água para este abastecimento público foram anunciadas algumas restrições para o uso da água na agricultura, por exemplo.
Estas medidas pecam por ser tardias?
Em condições normais isso seria normal. Ao longo do ano temos meses mais secos, outros em que chove mais, outros em que chove menos. Sempre foi assim no nosso país, como também há anos em que chove mais e outros que chove menos. Quando há um ano com muita falta de chuva, o que tem sido habitual – antigamente era de 10 em 10 anos – essa comissão reunia e definia o que iria fazer nesse ano, entretanto chove e isso passa. Não é anormal haver uma comissão de seca, como também não é anormal definirem-se restrições por um período limitado, o que neste momento começa a ser preocupante é que esta comissão reúne com demasiada frequência e as restrições estão a ser cada vez mais pesadas. Lembro-me de no ano passado terem sido introduzidas restrições para a exploração das albufeiras com produção hidroelétrica, de se ter sido estabelecido um volume mínimo nas albufeiras para, pelo menos, dois anos de abastecimento público. Este ano, o que me chamou mais a atenção foi a redução do consumo em percentagem para captações agrícolas e a criação de um grupo de trabalho para fiscalizar as captações. Acho que é positivo criar esse grupo de trabalho e ir fazendo uma verificação das captações. Se dissessem apenas que iram reduzir em 10% as captações seria ineficaz, porque muitas delas não estão licenciadas. Outras estão licenciadas, mas não têm um contador e muitas das que têm contador, esse contador não é verificado. Saúdo que, num momento de crise, num momento de falta de água, se faça o inventário das captações e se vá verificar realmente o que está a ser tirado, por uma razão ambiental, económica e até diria quase de salvaguarda dos aquíferos, neste caso do Algarve. Isto porquê? As águas subterrâneas vão variando de nível ao longo do ano, de ano para ano, junto ao mar quando se capta demasiada água e esse nível freático baixa muito. O que acontece? A água do mar invade o subsolo, entra água salgada para baixo dos sítios onde por cima há laranjeiras e outro tipo de coisas e os furos que vão captar a água depois passam a captar água salgada. Isso vai matar as plantas durante décadas. Seria totalmente irresponsável permitir a captação de água que pusesse em causa a salinização dos aquíferos. Isso como é que se consegue evitar? Primeiro, monitorizando os níveis que foi agora anunciado, e depois controlar as captações para evitar que esses níveis desçam abaixo de níveis preocupantes. Os níveis, de acordo com os dados, aparentemente ainda não são preocupantes, mas estão perigosamente perto. Por isso temos de reduzir as captações para evitar chegar a níveis que levem à salinização dos aquíferos.
As medidas preveem restrições nas barragens de Odeleite e de Beliche, mas também se quer reduzir em 20% a água utilizada nos campos de golfe…
Para mim, enquanto técnico do setor, o que me preocupa mais, e saúdo esta medida, é a salinização dos aquíferos que teria um impacto enorme durante décadas e mataria os aquíferos do Algarve. Não podemos permitir que se tire água em demasia, porque se assim acontecesse entraria água salgada, o que é quase irreversível durante décadas. Isso é o mais preocupante e essa medida é a que, talvez, me chama mais a atenção por ser diferente das outras e por ser diferente do que aconteceu no passado. Tenho ideia que nunca aconteceu uma situação dessas. Ou seja, vamos criar um grupo para ver exatamente o que é que estamos a retirar e vamos controlar o que está a ser retirado. No entanto, vai haver restrições de captação nas albufeiras e muitas das albufeiras são usadas essencialmente para uso agrícola e não havendo água ou quando os albufeiras descem abaixo de um certo nível impõem-se restrições para utilizar a água que ainda há, porque não se sabe quando é que vem mais. Isso é uma medida normal em situação de seca. E, de acordo com a lei, aquelas albufeiras têm como destino principal o abastecimento público e a regra é quando só tem para dois anos de abastecimento público pára tudo o resto que não seja isso. Falam também de campos de golfe, mas também podiam falar de piscinas.
Falam de jardins…
A água é uma questão política. O que é que está em causa? No Algarve temos população, turismo e agricultura só que não temos água que dê para tudo isto com os níveis de utilização que são feitos até agora. O que é que podemos fazer? Ou há restrições ou temos de mudar o que estamos a fazer. Claro que é discutível, lembro-me de umas declarações públicas do presidente da AMAL [Comunidade Intermunicipal do Algarve] ao referir que é preciso ter cuidado com as restrições, nomeadamente no golfe porque suporta um determinado tipo de turismo que é economicamente importante no Algarve. E fez a comparação entre o consumo da água num campo de golfe e o consumo da água na agricultura. É discutível se se deve privilegiar o campo de golfe ou a agricultura, mas o presidente da AMAL dizia que o campo de golfe, do ponto de vista de rentabilidade, seria o equivalente em termos de receitas à agricultura no Algarve e gasta muito menos água e dizia que temos de nos sentar para quando faltar água e quando há necessidade de restringir para ter também em conta o aspeto económico. O que é que pode ser dito relativamente a isso? Se pensarmos do ponto de vista de rentabilidade, sabemos quanto é que rende um campo de golfe. Por exemplo, os melhores campos do Algarve cobram por cada utilização 100 ou 200 euros e creio que alguns até mais. Essas pessoas vieram especialmente para jogar golfe, pagaram quartos, pagaram as refeições, logo dá uma certa rentabilidade para o Algarve. Da agricultura também é possível saber quanto é que rende. Este produto vende-se por x o quilo e é só multiplicar pelos quilos e vê-se o que é que dá. Há quem ache que se deva parar com o golfe porque é lúdico em detrimento de produzir alimentos, outros dizem que é preciso fazer contas e se não se produzir esses alimentos aqui, produz-se ali e não faz sentido estar a gastar uma certa quantidade de água em culturas de baixo valor acrescentado. Por exemplo, se não produzir laranjas aqui posso comprar ali.
O Governo há cerca de uma semana deixou de autorizar culturas permanentes de olival, frutos vermelhos e abacate…
Essa é uma questão de decisão. Lembro-me que há uns anos havia os chamados conselhos de bacia, em que num momento de crise, os utilizadores de uma determinada zona sentavam-se à mesa, literalmente, e negociavam entre si a partilha da água. Cada um defende a sua coisa. Agora foram anunciados pactos da água, que é uma coisa parecida, mas estamos a falar de conflitos, porque sabemos que não há agua para todos. Isso implica fazer restrições e cada um quer que sejam feitas restrições aos outros, no entanto, vai ser preciso chegar a um acordo, a um equilíbrio. Estes pactos da água que foram anunciados, creio que em conjunto, conseguirão, espero eu, encontrar equilíbrios possíveis. Se me pergunta a minha opinião, diria assim: os campos de golfe são rentáveis e sendo extremamente importantes para a economia da região e para o emprego, o que faria sentido é regar esses campos de golfe, até porque, estão mais perto das zonas urbanas e poderiam recorrer à água reutilizada das estações de tratamento. Por exemplo, em França já há outro tipo de restrições em que proibiram até a venda de piscinas. Isto para o Algarve seria quase fatal. Imagine que tem um potencial turista do norte da Europa que quer vir para o Algarve com crianças e se dizem que não há piscinas porque estão vazias, ele vai para a Grécia. O que se pode fazer relativamente às piscinas? Podem ser enchidas com água do mar. Se calhar não dá já para este ano, porque é preciso planear, mas é uma possibilidade. Quanto à água para a agricultura, quando se fala em proibição de abacates, frutos vermelhos, etc. também vejo com maus olhos que se demonize esta ou aquela cultura. Mas essencialmente o que é que se passa relativamente ao alimento? Os alimentos são produzidos em Portugal e também em outros lados e há uma globalização. E uma coisa é a segurança alimentar, outra coisa é o contributo para o PIB. Do ponto de vista de segurança alimentar, ela é garantida, sobretudo ao nível da União Europeia. Globalização quer dizer que no mundo todos compram, todos vendem e a Europa tem uma política agrícola comum que passa por subsidiar os agricultores para que tendencialmente haja comida mais barata e para que haja mais comida na Europa, favorecendo os agricultores face aos produtores agrícolas de outros sítios do mundo. Há quem critique esta política, porque vai impedir que os produtores dos países mais pobres consigam vender os seus produtos para outros países. Há quem diga que, do ponto de vista da economia, o subsídio a uma determinada atividade a torna menos eficiente. Mas a realidade é que Portugal não pode fazer nada em relação a isso, porque está inserido na Europa. E houve uma pandemia, depois uma guerra e ninguém teve falta de comida. Em Portugal, nunca faltou nada nas prateleiras dos supermercados, alguns produtos ficaram mais caros e até duplicaram de preço, o que aconteceu é que as pessoas com menos recursos económicos estão a ter dificuldade em comprar. Não há falta de comida, alguns têm […]