[Fonte: Visão] Antes de fechar esta página, num esgar enojado, saiba que esta é a alternativa proteica mais viável para o planeta. Descanse, não terá de comer gafanhotos – pelo menos para já. Enquanto sai e não sai a lei europeia para a comercialização de insetos para alimentação humana, fomos visitar os produtores nacionais que se preparam para nos servir esta iguaria
Naquela tarde, Guilherme Pereira está com os minutos contados e pede desculpa por isso. Não o recriminamos: tem alunos à espera para aprender karaté e nós atrasámo-nos a chegar a Matosinhos. Não é, no entanto, pelo seu cinturão negro que o visitamos nesta vivenda, longe do centro da cidade, mas por causa dos milhares de insetos que ele aí guarda, numa sala climatizada. Podemos dizer que estamos na sede da Portugal Bugs, apesar de nada o indicar e de sabermos, mais tarde, que partilha o espaço com a empresa do pai, especializada em material hospitalar. Aos 26 anos, foi essa a forma que encontrou para ter metros quadrados suficientes para a sua criação, a troco de uma renda barata. E o karaté é a maneira de subsistir e de poder continuar com a carolice de produzir tenébrios, a que o comum dos mortais chama “bicho-da-farinha”.
Começou a “brincadeira” na sua garagem, em 2016, quando acabou o curso de Engenharia Alimentar e o desafiaram a desenvolver algo comestível que levasse insetos. Até ao momento, não pode comercializar nem um bicho, apesar de produzir 30 a 40 quilos por mês, que resultam depois em seis a sete quilos de farinha. O que faz a tanto inseto? “Utilizo-os para aumentar a produção, para testes, amostras e desenvolvimento de produtos.” Escolheu dedicar-se aos tenébrios porque não deitam cheiro, não voam nem fazem ruído (“os grilos eram muito incomodativos para os vizinhos”). Com eles, ganhou vários prémios de empreendedorismo, o que lhe permitiu investir €20 mil para montar o que tem agora, junto com a namorada. Porém, o retorno monetário atual é zero.
Guilherme não é um excêntrico; é um visionário: deu ouvidos à FAO, quando esta organização das Nações Unidas para a alimentação falou, pela primeira vez, dos insetos como alternativa mais conveniente à produção de gado. Francisco Sarmento, o representante português, conta que há mais de 10 anos se tem vindo a “gerar e partilhar conhecimento, sensibilizar decisores políticos e opinião pública”. Isto porque tomaram consciência de que a atual procura de proteína animal está a pôr em causa a sustentabilidade do planeta. Não se prevê que, em culturas que não estejam acostumadas aos insetos na alimentação humana, eles caiam assim, de repente, nas ementas dos restaurantes ou nas prateleiras dos supermercados. “O que se pretende é que a indústria substitua alguma proteína animal sem que o consumidor note. Se essa substituição for de 10%, já estamos a falar em muitas toneladas de reservas hídricas”, assegura Francisco Sarmento. “Sabemos que a sua incorporação em produtos processados – a base da alimentação nos centros urbanos – não é danosa para a saúde nem para o ambiente.”
Quando entramos na sala onde Guilherme Pereira guarda os seus tenébrios, cuidadosamente mantida a 29 graus e com 45% de humidade, transportamo-nos para um ambiente tropical. Aí há 400 caixas vermelhas, daquelas que se usam nos Correios, destinadas à reprodução de besouros (alimentam-se – reproduzem-se – põem ovos). Duas vezes por semana, os sócios da Portugal Bugs vêm até aqui, fazem a separação dos ovos, repõem o farelo onde estão as larvas e acrescentam cenouras (é a este alimento que os bichos vão buscar a água de que precisam). Quando termina um ciclo de produção, os animais ficam de 48 a 72 horas sem alimento, para limpar o trato intestinal. Depois, passam numa máquina para serem peneirados e, por fim, são desinfetados com cloreto de magnésio e água. Só, então, vão para o congelador, onde morrem.
A desidratação é feita no micro-ondas. Para transformá-los em farinha, são triturados numa máquina do tipo 1,2,3. Atualmente, na Europa, o pó que daí resulta pode chegar a valer cerca de €100 o quilo. “Como não há produção, a taxa de incorporação é baixa e falta um esquema industrial”, explica Guilherme, desanimado porque está preparado para entrar no mercado e não o deixam. Tem vários potenciais interessados nos produtos que desenvolveu, como barrinhas de cereais ou massas.
Há dois anos que a Comissão Europeia está a elaborar uma proposta relativa às regras específicas de higiene para a produção dos insetos destinados ao consumo humano, com base num parecer da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), que estabelece o risco associado. Está também a processar os pedidos de autorização específicos de “novos alimentos”, relativos a insetos que terão de ser objeto de avaliação científica (espécies e respetiva tecnologia de produção). Segundo um comunicado da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), que será o organismo responsável pela aprovação de produtos e de estabelecimentos em solo nacional, espera-se que a EFSA emita, “até ao final do ano, alguns pareceres relativos à avaliação dos pedidos submetidos, pareceres que depois servirão de base às decisões da Comissão e dos Estados-membros sobre a matéria”.
Quando tudo for legal, na Europa serão comercializados três tipos de grilos, tenébrios, gafanhotos e alphitobius (uma espécie de barata). Quase nada, se pensarmos que existem duas mil espécies de insetos comestíveis.
SAI UMA TEMPURA DE GRILOS?
Na Escola Secundária de Oliveira do Bairro, distrito de Aveiro, há um laboratório cheio de insetos. Álvaro Barbosa, 41 anos, é o professor de Físico-química, responsável pelo projeto Bug Insect Box, desenvolvido, com muito entusiasmo, pelos seus alunos do 10º A. Logo no início do ano, a turma aceitou a sugestão e, pouco tempo depois, Guilherme Pereira, da Portugal Bugs, visitou-os, deu os seus tenébrios a provar e ajudou-os a começar. Mal sabia que iriam receber um prémio de €500 para investir na produção e na edição de uma revista online, que explica tudo sobre autoprodução (uma pequena caixa com quatro gavetas para ter insetos sempre à mão). “A partir de um kit inicial, podemos nunca mais deixar de ter tenébrios, transferindo-os de gaveta em gaveta, consoante o seu desenvolvimento”, explica o professor. Cátia, Lara, Marcos e Gabriel são os mais aplicados e sabem a lição na ponta da língua. “Com os insetos não temos de matar uma vaca para obter dois ou três quilos de bifes e quase não se produz gás metano”, diz Cátia, a mais despachada e aquela que não para de tirar mãos-cheias de tenébrios desidratados, que o professor trouxe para provarmos. Neste momento, o projeto segue com os testes aos excrementos que coam do farelo – creem que será um bom fertilizante.
Esta escola é inovadora, mas não está sozinha no panorama educativo nacional. O Colégio Valsassina, em Lisboa, também já sintetizou uma variante de salsicha, com a utilização de larvas de tenébrio. Posteriormente, compararam com as salsichas os teores de lípidos, proteínas e calorias (61 kcal vs. 170 kcal). Eis a justificação para este projeto dos alunos do 12º 1A: “A elevada taxa de crescimento demográfico faz surgir, também, a necessidade de procura de fontes mais baratas de proteína animal, apresentando-se os insetos como uma solução plausível.”
Desde 2013 que a chefe Patrícia Borges, professora do Instituto Politécnico de Leiria, se dedica ao desenvolvimento de produtos com insetos, envolvendo os seus alunos na criação de receitas, como bolachas de manteiga com tenébrios, wraps com grilos, gafanhotos com malagueta ou salteados em azeite e alho, Zophobas (minhocas) com chutney de manga e tempura de grilos.
Se existem no mundo dois mil milhões de pessoas que comem insetos, porque não apanhar a onda de inovação que já está aí? Há um ano, por exemplo, nasceu a Portugal Insect, uma associação dos nove produtores do setor (alguns apenas para alimentação animal, coisa que também ainda não acontece em Portugal). Rui Nunes, 43 anos, é o presidente do consórcio, criado para que este novo negócio se faça notar. Já celebraram o dia mundial do inseto comestível (27 de outubro), conseguindo uma prerrogativa da DGAV para que nessa data se pudesse consumir os bichinhos. “Por semana, temos dois a três emails de pessoas a perguntarem-nos como se pode entrar neste negócio”, revela. “Tão rápido quanto possível, queremos pôr isto no prato dos portugueses.”
Há três anos, Rui Nunes juntou-se a Daniel Murta, 34 anos, na EntoGreen, uma empresa sediada no Vale de Santarém, nas instalações do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, a primeira instituição a acreditar nesta produção de moscas soldado-negro. Daniel, veterinário e investigador, sabe que existe um problema europeu de escassez de proteína para a produção animal e que os insetos são a saída para esta encruzilhada. Por enquanto, a lei só permite transformá-los em alimentação para peixes, mas espera-se que em breve esta se estenda às aves e aos porcos.
Durante a espera de vários anos, já houve tempo para imaginar o futuro. Rui e Daniel estão convictos de que ele passará por uma unidade-piloto de seis mil metros quadrados, cumprindo com as regras para a alimentação animal e humana, num investimento de dois a três milhões de euros. Aí serão empregadas 50 pessoas para produzirem 500 toneladas de larvas por mês, 750 de fertilizante, 214 de proteína e 42 de óleo. Um projeto ambicioso, bastante diferente do local onde agora estimulam as moscas a pôr ovos no sítio certo, para que possam recolhê-los (uma só mosca põe 800 larvas). Hoje produzem uma tonelada de bichos, que é usada em ensaios de substituição da soja em galinhas.
SEM SABOR E ESTALADIÇOS
Francisco Marques, 27 anos, prefere apostar nos grilos Acheta domesticus na sua startup Buglife, porque esses insetos têm uma enorme capacidade de conversão em proteína, alto teor de ferro e ómegas. A sede há de vir a ser em Penela, numa incubadora, mas entretanto vai “safando a coisa” numa casa de família abandonada, em Tomar. Na sala, escurecida e de acústica isolada, ouvimos o cantar dos cerca de 15 mil grilos que ali estão. Mudam de caixa de cartão, consoante crescem, durante perto de três meses. “A sua morte, no congelador, é indolor, pois há que respeitar o bem-estar animal”, realça. Também já tem vários restaurantes interessados em servir esta iguaria como um snack inovador e que seja apetecível para câmaras dos smartphones. “São ótimos, não têm sabor, apenas o crunchy.” No entanto, Francisco não se fica pelo inseto desidratado: já experimentou, por tentativa e erro, fazer pão, massa e barrinhas de cereais. “Queremos ser fornecedores de proteína premium.”
José Gonçalves, 49 anos, também se tem dedicado ao grilo, na sua Nutrix, porque apresenta um bom compromisso entre o perfil nutricional e o de produção. No campo da transformação, aliou-se ao Instituto Politécnico de Leiria, num programa de produtos inovadores para exportação, e criou uma bolacha. “De acordo com a interpretação da DGAV, podemos exportar um produto de consumo para um país em que este seja legal, desde que não produzamos os insetos ou a farinha.” Por isso, José manda vir os bichos do Canadá e transforma-os em bolacha. Caso os testes sejam bem-sucedidos, virá a ser exportada. Se a lei for aprovada ainda neste ano, talvez possa ficar por cá esse biscoito com alto teor proteico, baixo em açúcares e sem glúten. Os produtos com base em insetos destinam-se, aliás, a um consumidor que tem uma alimentação saudável, sabe ler rótulos e se preocupa com o impacto no ambiente daquilo que come. Pelo menos, é assim nos países em que já se pode comercializar – inclusivamente em sete locais da Europa. Os que já criavam insetos no momento em que as normas começaram a ser elaboradas puderam continuar a fazê-lo. “Quando o mercado for aberto, corremos o risco de ser invadidos pelos produtos desses países, que se desenvolveram dez vezes mais depressa do que nós”, desabafa. Os bichos são inevitáveis: vamos comê-los, mais dia, menos dia. Sejam portugueses sejam estrangeiros.
QUANTO MAIS DISFARÇADO, MELHOR
Para fugir ao efeito nojo que os bichos podem causar nos consumidores ocidentais, os primeiros produtos a saírem para o mercado serão inócuos de sabor e de aspeto. Mas nem sempre…
Pão de grilo Parte da farinha utilizada é substituída por este inseto triturado – assim o produto passa a incorporar 20% de proteína
Barritas proteicas Levam manteiga de amendoim, aveia, mel, quinoa, bagas goji e farinha de tenébrio
Massas com farinha de inseto Passam a ter o valor proteíco de uma refeição (20 gramas)
Farinha Chama-se assim, mas não é mais do que o inseto desidratado e moído. Por isso, terá uma validade curta, de seis meses
Insetos desidratados Comem-se como um snack, podendo servir-se simples ou condimentados com sabor a alho ou a cebola
Toppings Para pôr por cima de gelados ou em bombons
Guloseimas Para consumir em épocas festivas com a finalidade de pregar partidas
Bolachas de chocolate Aos ingredientes comuns, juntam-se três colheres de tenébrio, por exemplo