O caderno de encargos do novo Governo
A semana que hoje termina foi, naturalmente, marcada pela constituição do novo Governo, numa altura em que já é conhecido todo o elenco governativo, Ministros e Secretários de Estado.
Tivemos, no entanto, um conjunto de iniciativas no plano internacional, que ainda tornam mais relevante analisar o tipo de governação de que necessitamos ou podemos esperar. Convém atentar, desde logo, à coesão e solidez tão necessárias e, mais do que nunca, a uma boa cooperação interministerial, quer devido à geopolítica mundial, com os desafios da NATO e as tensões com os Estados Unidos da América (EUA), quer devido à nova arquitetura da Assembleia da República. No Plano internacional, falamos, naturalmente, das previsões económicas da OCDE, do pacote de primavera da Comissão Europeia, que define as orientações para aumentar a competitividade da União Europeia, com o lançamento de uma nova estratégia, e, também, da política de Bruxelas para a gestão da água. E não nos esqueçamos das novas tarifas sobre o alumínio e o aço, que muitos países consideram ilegais, para além de injustificadas.
Nas pastas que mais diretamente nos dizem respeito, temos uma relativa continuidade de nomeados, pese embora a rutura, com vantagens e inconvenientes, ao nível da Economia, que integra agora a Coesão Territorial. Percebe-se a relevância da integração pela necessária eficiência da execução dos fundos – desde logo o PRR -, pela urgência da reindustrialização da Europa, tal como da atração de investimento, nacional e estrangeiro. Como potencial inconveniente, apresenta-se a dificuldade de acesso à “pasta” da Economia. Tínhamos uma excelente relação com o ex-Ministro Pedro Reis, profundo conhecedor do agroalimentar, o que nos permitiu alguns avanços relevantes para o setor, contando com a cumplicidade de políticas ao nível da promoção das exportações, a constituição do grupo interministerial de discussão sobre os impactos das tarifas com as organizações representativas dos setores afetados, a SILOTAGUS (antiga SILOPOR), os resíduos e demais dificuldades das empresas. Outro eventual ponto fraco, pode ser o funcionamento interno de um superministério, pela sua natural complexidade.
É evidente que temos de dar o benefício da dúvida e esperar que o trabalho que foi (e bem) desenvolvido, não regresse à “estaca zero” e seja aprofundado. Até porque as tarifas continuam na ordem do dia, estão a esgotar-se os 90 dias e as negociações com os EUA não estão a caminhar no bom sentido, perante uma Administração norte-americana cada vez mais errática e pouco confiável. Aliás, este divórcio (?) entre o Presidente Trump e o “ex todo-poderoso” Elon Musk (mais do que previsível) não deixará de ter consequências, pelo menos do ponto de vista mediático e quiçá com repercussões internas, o que pode acrescentar ao contexto geopolítico mundial ainda mais imprevisibilidade.
Para já, a questão (e inquietação): onde vai posicionar-se o Agroalimentar? Qual vai ser a interligação da Economia com o Ministério da Agricultura e Mar?
Pessoalmente, tenho pena de que se tenha perdido a oportunidade de acrescentar o termo “Alimentação” ao Ministério da Agricultura (agora reforçado com o Mar), o que estaria mais em linha com as discussões em Bruxelas, da nova Visão.
Seria um simbolismo identitário, para além de político.
Mas, no fundo, o que mais importa é se o conceito faz parte do modelo de governação ou se está bem interiorizado, se se entende que Alimentação é também defesa e segurança. E já todos percebemos (ou deveríamos ter percebido) que sim e como é relevante posicionarmos a Agricultura e Alimentação neste planeamento geoestratégico. A manutenção do Ministro José Manuel Fernandes e da sua equipa é, também nessa perspetiva, uma excelente notícia, pela cumplicidade que assumiu para com a IACA em dossiers tão relevantes como a desflorestação, as Novas técnicas Genómicas (NGT), a visão sobre a relevância da alimentação e da produção pecuária ou as ameaças sanitárias e fitossanitárias. E vamos ter, em articulação com outros Ministérios, os sistemas alimentares sustentáveis, os acordos comerciais, os stocks de segurança, a dependência de matérias-primas e direitos antidumping, ou a estratégia “Água que Une”.
Uma outra boa noticia é o facto de o novo Governo ter assumido o combate à burocracia, a defesa da simplificação de processos, a celeridade nas aprovações dos licenciamentos, a redução do peso da regulação (não raras vezes para além das Diretivas) que retira energia e competitividade às empresas. A fiscalidade também deverá ser alvo de uma redução e aqui deixamos uma nota para duas das bandeiras da IACA na discussão do último Orçamento de Estado: a continuidade da isenção do IVA ao nível dos fatores de produção para a agricultura (e a alimentação animal é uma delas), bem como a redução do IVA na alimentação de animais de companhia (de 23 para 13%), para além da promoção de uma equidade fiscal, que beneficiará a inovação, o investimento e a criação de riqueza para melhorar o rendimento das famílias.
A continuidade da Ministra do Ambiente é também uma notícia muito positiva, não só porque conhece os dossiers, mas também pela praxis de cooperação com a Agricultura, tão necessária para dar resposta a temas como o EUDR – que, nas condições atuais, tem de ser adiado, sendo urgente o reforço de recursos humanos nas estruturas da DGAV e do ICNF – e o VALORFITO na área da gestão de resíduos agrícolas, que está claramente na ordem do dia, pois os valores propostos para estes serviços são inadmissíveis e intoleráveis, completamente desproporcionados. Quanto a este último, esperamos que a Ministra e a APA possam receber as Associações o mais rapidamente possível. Há que definir e clarificar, para além dos resíduos, o reforço da economia circular e a política energética, em particular o dossier dos biocombustíveis, face aos recursos disponíveis para a capacidade de aprovisionamento do setor da produção de alimentação animal. Vale a pena recordar que, sem agricultura e sem pecuária, não existe ambiente. O que não significa que não devamos prosseguir o combate às alterações climáticas, a descarbonização ou a transição para sistemas de produção mais sustentáveis.
Quase a terminar, não queremos deixar de dizer que, apesar das referências a este Governo como de continuidade, vários são os temas que o obrigarão a ser um Governo de inovação. Vejamos: a modernização do Estado, o investimento de 2% do PIB na defesa (sem colocar em causa os apoios sociais) e potenciando um novo cluster da economia, as discussões do PEPAC, do Quadro Financeiro Plurianual, as relações com a Ucrânia, a imigração e as necessidades urgentes de mão-de-obra ou o populismo associado às escolhas difíceis que têm de ser feitas, são temas que vão obrigar-nos a um novo “mindset” e a um Governo que não pode ser de continuidade, mas reformista.
Despojados de alguns radicalismos, ou pelo menos num ambiente teoricamente mais favorável, vamos ter uma oportunidade única para as necessárias reformas e para recuperar o tempo perdido.
Para todas essas mudanças, é importante olhar para o país real, auscultar as empresas e quem as representa, é importante uma boa cooperação e diálogo com a sociedade civil. Podem contar com a IACA e com os seus associados.
Por último, felicitando a CAP pelo início da comemoração dos seus 50 anos, não podemos deixar de concordar com a Confederação quando refere que “o tempo das intenções expirou e que é preciso executar sem demoras”.
Nessa perspetiva, até pelas pressões externas, o Governo não vai ter estado de graça!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Draghi na sombra dos discursos? – Jaime Piçarra – Notas da semana