Arlindo Fortes e Carlos Monteiro, dois cabo-verdianos de gerações diferentes, têm em comum a formação em agronomia, a mesma que o líder histórico Amílcar Cabral completou há mais de 70 anos e que o “moldou” para a luta política.
“Passou pela Guiné-Bissau, já conhecia Cabo Verde, esteve em Angola e isso permitiu-lhe perceber o jugo colonial que tinha as pessoas completamente amarradas às suas próprias decisões”, referiu à Lusa o professor universitário Arlindo Fortes.
Para o académico, a formação como engenheiro agrónomo permitiu a Cabral “entrar pelas realidades adentro” desses e de outros países, bem como conhecer os modos de vida de todas as populações e etnias.
“Isso moldou Amílcar Cabral e empurrou-o mais, ainda, para um lado político que inicialmente talvez não tivesse sido tão vincado”, disse Carlos Monteiro, em entrevista à Lusa, a propósito do ano do centenário do nascimento do pai das independências guineense e cabo-verdiana.
Mas a decisão de estudar agronomia não foi tomada ao acaso e tem raízes nas suas vivências.
Cabral tinha “excelentes notas” e até queria seguir uma área ligada à medicina, mas conseguiu uma bolsa para o Instituto Superior de Agronomia de Lisboa e “agarrou” a oportunidade.
O motivo? “Tinha na memória, e na sua vontade, a luta pela emancipação dos povos”, “contra as grandes inércias coloniais”, porque Cabo Verde sofria fomes, acrescentou Arlindo Fortes, professor da Universidade Pública de Cabo Verde (Uni-CV), de 44 anos, que nasceu em Portugal, filho de pais cabo-verdianos.
Mas nem tudo na vida de Cabral foi um mar de rosas após a conclusão do curso, em 1952.
Segundo Fortes, ele teve “muitas desilusões profissionais” em Portugal: por exemplo, foi o melhor classificado num concurso público para vagas de engenheiro agrónomo da então Junta de Colonização Interna, mas foi preterido.
Essa “injustiça” foi “mais lenha” para alimentar a luta política.
“O que ele passou como engenheiro, como técnico, deu-lhe uma bagagem enorme que lhe permitiu ver o outro lado da questão, a questão política”, insistiu Carlos Monteiro, de 68 anos, atual bastonário da Ordem dos Engenheiros de Cabo Verde, e que também tem estudado este outro lado de Amílcar Cabral.
O trabalho de fim de curso do independentista foi dedicado à erosão e conservação do solo em Portugal, realizando posteriormente trabalhos práticos em Angola e na Guiné-Bissau, onde foi, em 1953, o responsável pelo primeiro recenseamento agrícola no país.
Em Cabo Verde, fez apenas “trabalho intelectual”, sobretudo escritos em defesa de terra, em que criticava o sistema de gestão do solo feito pelo sistema colonial, segundo as mesmas fontes.
“Agrónomo antes do seu tempo”, o líder das independências de Cabo Verde e da Guiné-Bissau dava muita importância ao agricultor e defendia a sua “emancipação económica”, para evitar a imposição de outras técnicas por parte do domínio colonial, referiu Fortes.
As ideias foram “muito importantes” para Cabo Verde, sobretudo no pós-independência, a seguir a 1975, altura em que o país tinha um solo “praticamente nu”, em risco, pelo que era determinante a sua proteção.
Carlos Monteiro notou que nos primeiros anos da independência, o país realizou “grandes projetos de conservação de solos”, com ajuda internacional, mas com a evolução do arquipélago, deixando o grupo de países menos desenvolvidos, para ascender aos de rendimento médio, esses financiamentos acabaram.
Arlindo Fortes considerou mesmo que as questões levantadas por Amílcar Cabral sobre a preservação dos solos quase que “pararam no tempo”, defendendo que devem ser retomados, para o país evitar problemas maiores a nível ambiental.
O bastonário, por seu lado, entendeu que o esforço terá de ser feito com financiamento interno para o país voltar a construir “diques, levadas” e praticar reflorestação.
“A conservação de solos deve ser um desígnio nacional”, defendeu o bastonário e engenheiro agrónomo, para quem há que “reinventar” a agricultura, para ser vista como um “setor económico válido”.
“Ter melhor salário, ter luz, pensar o meio rural, e que a agricultura seja valorizada. Deve haver programas para os jovens que querem ficar no meio agrícola”, insistiu Monteiro.
Para o professor universitário, o país não deve apenas construir infraestruturas, mas ter um olhar “mais aprofundado” para o solo, para que seja um “património nacional”.
Fundador do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Amílcar Cabral celebraria 100 anos em 12 de setembro de 2024, decorrendo atividades em diferentes países para assinalar a efeméride.
Em Cabo Verde, várias comemorações estão associadas à fundação homónima e incluem um colóquio internacional sobre o líder histórico, a realizar em setembro, como ponto alto do programa.