“Sim, estou convencido que o fogo não gosta que molhem sua base de sustentação. Combustível molhado não arde ou arde muito mal. O fogo não gosta que molhem aquilo que ele irá comer/devorar nos próximos segundos”.
Com base em raciocínios simples deste tipo, e na ideia de que o terreno era impossível para o combate a pé, o que implicava a imprescindibilidade de meios aéreos, a resposta técnica pode ser um bocadinho mais complexa.
“Que tempo permanecem no ar (e já agora em terra também) sem efetuar qualquer descarga por não haver condições mínimas de segurança ou tão somente de visibilidade? Onde é que os meios aéreos efetuam as descargas (provavelmente a densidade de descargas coincide com locais onde todos os outros recursos também chegam – o que até é relevante porque sem consolidação em terra as descargas de pouco valem, mas cai por terra o argumento da necessidade dos meios aéreos para os espaços inacessíveis por meios terrestres)? Qual a eficácia dessas descargas nestas condições? E mais, em territórios acidentados como aqueles, é muito improvável que os aviões tenham mais chances de sucesso que os helis. Servem para apaziguar almas atormentadas, mas com uma relação custo/ benefício excessivamente desfavorável. Em Portugal insiste-se num combate com a cabeça enfiada nas chamas, direto, com água. Nestas condições havia que ter sido estabelecido o perímetro máximo que o incêndio poderia alcançar com base na progressão potencial, nas oportunidades existentes para combate direto, nos locais onde pudessem ser criadas novas oportunidades (para combate direto e indireto) diferenciando os recursos a utilizar (mecânicos ou manuais, com e sem o apoio de pinga-lume), e nos valores em presença (humanos, materiais, ecológicos). O meio aéreo quanto muito procuraria retardar a progressão onde fosse possível e/ou onde fosse mais necessário ganhar tempo para que as equipas implementassem as estratégias de ataque indireto ou trabalhassem no sentido de criar essas condições para ataque direto. O resto é folclore”.
E pode ainda aumentar-se a complexidade da resposta.
“Em Espanha, não há qualquer limitacao de utilizar água salgada, nem nas Baleares, nas Canarias ou Galiza! Porque é que ca fizeram essa limitações? Onde há esta evidência técnica ou cientifica? Usar água doce limita a operação, já de si pouco eficaz e nada eficiente, pois as largada de água, pela orografia da Madeira, têm que ser muiot altas. … O Canadair não é o meio aéreo adequado para a complexa orografia da Madeira. Tivesse havido planeamento adequado e por protocolo com Governo das Canarias, podiam usar outros meios (helicópteros medios, por exemplo)”.
Eu escrevo pouco sobre combate a fogos porque sei pouco do assunto.
Partindo do que vou ouvindo a terceiros, no entanto, gostaria de fazer um comentário sobre doutrina de combate ao fogo florestal, para o que o fogo da Madeira me é útil como ilustração.
A ideia com que começo o post é uma ideia de senso comum: a água é um bom instrumento de combate aos fogos florestais.
Sendo inegavelmente senso comum, não é necessariamente bom senso.
O fogo urbano, de maneira geral, ocorre num espaço relativamente curto, consome combustíveis disponíveis de forma concentrada e tem um tempo de residência muito elevado, progredindo com relativa lentidão em extensão.
Por outro lado, por causa dos inúmeros fogos urbanos ao longo da história, com consequências terríveis, as cidades passaram a ter bocas de incêndio por todo o lado.
Ou seja, há fogos concentrados e água disponível, quase sem limitação, no ponto em que o fogo ocorre.
Um fogo florestal não é nada disto, é uma chama em movimento rápido (os fogos florestais ocorrem mais complicados ocorrem com ventos fortes) num território em que a disponibilidade de água para o combate é quase inexistente.
Isto significa que combater um fogo florestal com água implica andar de um lado para o outro atrás do fogo com depósitos de água que serão sempre insuficientes.
Não admira, por isso, que bombeiros urbanos acabem a fazer o que fazem em Portugal: esperam pelo fogo junto a origens de água relativamente abundantes.
E confiam em meios aéreos para transportar rapidamente água para onde anda o fogo.
O problema é que os meios aéreos, no combate a um fogo florestal, podem ser úteis, mas raramente isso acontece quando são usados como meios de transporte de volumes brutais de água que seriam necessários para ter um efeito real num fogo (um canadair pode transportar seis mil litros de água, dizia um jornalista entusiasmado, sem perceber bem, acho eu, que isso é um depósito de 3 metros de comprido, por dois de largo e um de altura, o que, evidentemente, não é suficiente para ter um efeito decisivo e duradouro numa frente de fogo, mesmo que seja possível despejar nas melhores condições, coisa que raramente acontece na Madeira).
Os meios aéreos são muito úteis para deslocar pessoas de um sítio para outro rapidamente, e podem ser úteis como apoio complementar a combate terrestre, mas não apagam fogos, por si só, isto é, sem ser em complementaridade com combate terrestre por sapadores.
Enquanto não for claro, em Portugal, que o trabalho de bombeiros urbanos e o de bombeiros florestais é radicalmente diferente, ao ponto da água ser um instrumento ineficientíssimo no combate a incêndios florestais e, consequentemente, estas funções não derem origem a uma separação institucional, com profissionalização dos bombeiros sapadores florestais, a doutrina de combate ao fogo florestal continuará a ser paupérrima, assente em pensamento mágico sobre a eficácia dos meios aéreos, como exemplarmente ilustrado pelo fogo da Madeira.
E os meios aéreos continuarão a ter o papel que hoje têm no combate ao fogo florestal em Portugal: tranquilizar as pessoas e desresponsabilizar os responsáveis pelo combate, sem que tenham grande efeito real no combate aos fogos florestais.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.