Geofísico, professor universitário, investigador em alterações climáticas, Filipe Duarte Santos diz, sobre as recentes chuvas fortíssimas em Portugal, que é preciso preparar os cidadãos para os fenómenos extremos, que vão ser cada vez mais frequentes. E lamenta a falta de literacia nas autarquias, até porque “a tecnologia não resolve tudo”.
Com metade do país debaixo de água, a capital, Lisboa, foi o epicentro de dois dias de chuva em quantidades anormais. Apesar dos alertas, das previsões e dos avisos, nos lugares do costume as cheias deixaram o rasto de destruição de sempre. Na última década, há mais um culpado – as alterações climáticas, mas há dezenas de anos que falta planeamento, ordenamento de território, prevenção e, sobretudo, soluções para problemas que já sabemos que vão existir. É convidado desta entrevista Filipe Duarte Santos, geofísico, professor universitário, investigador na área das ciências do ambiente e dá particular atenção às alterações climáticas.
Vamos começar pelos fenómenos da semana. Temos capacidade de prever o tempo, mas o resultado foi o mesmo de sempre. Porquê?
Temos capacidade de prever o tempo, mas não a uma escala muito pequena e com fiabilidade é mais difícil, embora se tenham feito progressos nesse sentido. Portanto, sabemos dizer se vai chover, podemos fazer cálculos da quantidade de precipitação, podemos fazer alertas através de sistemas de radares e de modelos para ver o que se vai passar daqui a duas ou três horas. Há países que fazem isso de forma regular, como os Estados Unidos e outros países que têm fenómenos extremos bastante significativos. Depois, há que calcular e estimar quais vão ser os impactos da precipitação intensa, sobretudo em intervalos de tempo curtos, sobre um determinado território e zona urbana. Também é possível fazer isso praticamente em tempo real, a vulnerabilidade é evidentemente maior se forem zonas em que o solo está impermeabilizado com construções, perto das zonas costeiras, como é o caso da zona de Lisboa, nomeadamente em Algés e Alcântara. A vulnerabilidade está acrescida devido ao nível médio global do mar estar a subir e, portanto, se esse evento extremo de precipitação coincidir com a maré alta, o escoamento de água é muitíssimo mais difícil. Sabemos que o nível médio do mar já subiu cerca de 20 centímetros e que até ao fim deste século vai subir cerca de 50/60 centímetros. Temos todos estes fatores que são necessários ter em conta no planeamento das cidades, na sua adaptação a estes eventos de precipitação intensa, por forma a criar maior resiliência.
Estes fenómenos de extremo calor, seca severa, cheias, vão repetir-se com mais frequência nos próximos anos?
Sim, tudo indica que isso é um facto, do ponto de vista científico e da narrativa da ciência, é isso que indica. Tem havido outras narrativas a propósito do clima, mas a narrativa da ciência é que já se estão a observar em todo o mundo eventos extremos. Sejam ondas de calor com temperaturas extremamente elevadas, praticamente gravosas nas regiões tropicais, quer sejam secas – e estávamos em situação de seca no mês de outubro, sobretudo o sul de Portugal -, e também precipitação intensa. O ciclo hidrológico está mais acelerado porque a temperatura é mais alta, portanto, mais evaporação no oceano, a atmosfera contém mais vapor de água e, consequentemente, quando ocorre precipitação há uma tendência para uma maior intensidade. O mesmo acontece com as manifestações de vento mais forte, como nos ciclones tropicais que não atingem propriamente Portugal, embora “restos” destes fenómenos já nos tenham atingido. Mas, claro, não são fenómenos que nos atinjam com a intensidade com que ocorrem nos Estados Unidos, nas Filipinas ou no Golfo do México, por exemplo. Todos estes eventos estão a tornar-se mais intensos e mais frequentes.
Falando ainda de modelos de previsão, aqueles que temos hoje não são capazes de antecipar com mais antecedência estes fenómenos mais extremos, para que nos possamos prevenir?
A presença de uma grande pressão a oeste de Portugal que provocou estes rios atmosféricos, isto é, zonas da atmosfera em que a densidade e quantidade de vapor de água era muito grande e acabou por se converter em precipitação, isso era algo que se conhecia. Depois, acaba por depender da escala. Sabemos isto através de uma escala sinótica, a escala desta grande depressão que tem pressões muito baixas, e depois lança estas quantidades de precipitação. O que se passa exatamente numa determinada região, isso já é algo mais difícil, mas existem modelos que permitem fazer, não só, uma estimativa da quantidade de precipitação que vai ocorrer, mas também modelos combinados com a hidrologia que permitem prever como é que a água vai subir, em que sítios, e tudo isso. Há outras coisas que se podem fazer como, por exemplo, as cidades terem sensores que nos permitam saber, em tempo real, como está a ser a evolução da subida da água no caso de haver precipitação muito intensa. Para a Proteção Civil, esses são dados muito importantes.
Já temos esses sensores em Portugal?
Que saiba, ainda não, mas há em Barcelona e Paris. Claro que depois é preciso ter isso operacional, não pode ser algo que se coloca e depois não se mantém, é preciso monitorizar o seu funcionamento para serem úteis em situações semelhantes a esta que aconteceu.
“Sem um compromisso entre todos os países não há forma de minimizar os efeitos das alterações climáticas e do consumo de energia.”
Parece-lhe que a sociedade e os poderes públicos estão hoje mais despertos para estes efeitos que podem advir das alterações climáticas? Já há esta consciência ou continua a haver uma certa negação?
Penso que as pessoas quando estão em situação de seca acham que não é necessária uma adaptação, só pensam em esperar uns dias pela chuva. E quando estão numa situação de inundações, já não querem falar em seca porque já lhes parece impossível que vá haver alguma seca. Esta é uma análise que pode ser melhorada, especialmente tendo em conta aquilo com que estamos confrontados. Tudo o que respeita à água e ao seu ciclo está mais acelerado, os extremos são mais intensos, e está a desenvolver-se vários aspetos da física e da atmosfera que procuram descrever e tentar prever com maior fiabilidade estes eventos extremos. Isto é a física dos fluidos, a atmosfera é um fluído e é uma das partes da física mais complexas, contudo, estão a fazer-se progressos nesse sentido. Há muitos investigadores a fazer esse trabalho, mas depois é preciso que isto se complemente com medidas no terreno.
“Não vamos conseguir evitar todos os prejuízos (…) Mas há bons exemplos de prevenção como Loulé, Torres Vedras, Guimarães e Cascais, entre outros.”
Essas medidas estão a acontecer? Os poderes públicos estão sensíveis a estes temas, na sua opinião?
Penso que na Europa já há exemplos muito avançados de criar resiliência e adaptação a estes eventos extremos de precipitação. Por exemplo, um dos aspetos a que dão grande ênfase na Holanda é dar espaço à água. Isto é, se há chuvas muito intensas e se a água é canalizada para locais em que não prejudique os bens materiais e as pessoas, aí é menos problemático. Eles têm parques de estacionamento, onde os carros são retirados com antecedência, e as portas são abertas para a água ir para aquele local de estacionamento. Ou, por exemplo, em espaços jardinados ter uma zona mais baixa, impermeabilizada, que depois enche e fica uma espécie de lago provisório.
Já falou de sensores em Barcelona e em Paris, corredores de água na Holanda, mas e em Portugal?
Em Portugal, aquilo que aconteceu foi um evento extremo e muito intenso, choveram 200 milímetros, é uma coisa brutal, e há a lastimar apenas uma vítima. Isso é algo positivo. Recordemos que este ano, até porque estes eventos externos dão-se por todo o mundo, no Paquistão houve uma monção muito violenta e morreram 1700 pessoas, cabeças de gado destruídas, campos agrícolas arruinados, casas destruídas, e 40 mil milhões de dólares de prejuízos. Em Portugal, conseguimos evitar vítimas e isso é algo positivo, mas claro […]