Agora que a época de fogos já está no horizonte, talvez valha a pena lembrar os especialistas de lareiras.
Em dezenas de discussões sobre o impacto das diferentes espécies de árvores nos fogos – de maneira geral a propósito da tese, muito popular, mas errada, de que o problema de fogos de Portugal está no excesso de eucaliptos e pinheiros – há alguém que vem com o argumento da lareira.
Eu próprio fiquei de boca aberta ao ouvir, numa audição na Assembleia da República, a Associação de Guardas e Vigilantes – em rigor, dirigentes que lá estavam e eram vigilantes da natureza – defender os seus pontos de vista com o famoso argumento da lareira: toda a gente sabe que a lenha de eucalipto e sobreiro ardem de forma diferente na lareira, logo, os eucaliptais e os sobreirais também ardem de forma diferente.
O mais curioso nisto é que este argumento tem sido estudado e investigado por quem trabalha em ecologia do fogo e as conclusões não são essas: o tipo de fogo depende essencialmente da estrutura e quantidade de combustíveis finos, sendo praticamente irrelevante a espécie dominante do povoamento florestal.
Isto é, um eucaliptal não gerido está mais próximo de um carvalhal não gerido que de um eucaliptal gerido, no que diz respeito ao comportamento do fogo (isto é válido para qualquer espécie de árvore).
Se seu vejo que a lenha de eucalipto e de sobreiro ardem de forma diferente na lareira, isso só pode querer dizer que estes investigadores estão todos comprados e dizem o que lhes pagam para dizer, é a conclusão dos especialistas de lareiras.
O problema nisto é o especialista de lareiras não se aperceber que sabe tão pouco de ecologia do fogo, que é incapaz de perceber onde está o problema do que diz.
O fogo da lareira é um fogo estático, com um tempo de residência da chama prolongadíssimo (ou seja, arde sempre no mesmo sítio), que é preciso ir alimentado com combustíveis finos, se se quiser manter a chama acesa (um borralho pode ser muito simpático e confortável, dá para assar umas chouriças ou castanhas, mas não tem chama exactamente porque lhe falta o combustível fino, sendo verdade que o borralho do sobreiro é muito mais interessante que o borralho do eucalipto).
O fogo florestal, pelo contrário, caracteriza-se por chamas em movimento, com tempos de residência relativamente curtos, e é a chama que “vai à procura” dos combustíveis finos para transmitir a chama e continuar a progressão, é um fogo que passa e não fica. Também por isto muitas vezes se usa o paralelismo com a herbivoria para procurar compreender o que é que o fogo “escolhe” na sua progressão.
Na verdade, com condições meterorológicas extremas, não escolhe, segue a direito transmitindo a chama entre folhas, raminhos, manta morta ou qualquer outro combustível fino, proveninete de qualquer espécie, deixando para trás, ao contrário do que acontece na lareira, os troncos com mais de 10 cm de diâmetro, que não ardem. Ao contrário do que se passa na lareira, o fogo florestal não se alimenta da lenha grossa (mesmo na lareira ninguém começa o fogo com material grosso pela simples razão de que para o tornar incandescente é precisa muito mais energia que a da ignição inicial).
O uso do argumento da lareira apenas identifica o nível de ignorância de quem o usa, é uma medida muito clara de que não se sabe sequer o suficiente sobre fogos para saber as consequências de essenciais na caracterização do fogo, como o tempo de residência da chama.
Resumindo, um especialista de lareiras raramente é um especialista em ecologia do fogo e em fogos florestais, não compreendendo por que razão um especialista em ecologia do fogo insiste em contrariar o que lhe parece evidente a partir da sua experiência directa.
Quando ouvirem este argumento, podem passar à fase seguinte da discussão, dali não se aprende grande coisa sobre fogos florestais.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.