Nas Notas da Semana de 11 de abril, aqui refletimos sobre o período de trégua de 90 dias na “guerra tarifária”, então particularmente acesa entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União Europeia (UE), num artigo intitulado “E daqui a 90 dias?.
O que poderia acontecer? Uma pausa no furacão Trump, com uma avaliação dos danos, perdas e lições retiradas de todos os conflitos e contradições na política interna, mas sobretudo externa? Ou a persistência de Washington na assunção de que todos os países se devem vergar para aceitar tudo aquilo que a nova Administração pretende impor?
De facto, muita coisa aconteceu desde então: no plano interno, tivemos o “divórcio litigioso” com Elon Musk, a aprovação do orçamento com cortes muito significativos (programas de apoio, incluindo ao setor agrícola, desmantelamento de organizações governamentais), um aumento do déficit e as crescentes preocupações com a inflação, com o emprego e com o crescimento da economia. Apesar da quebra de popularidade, o facto é que a sua base de apoio não dá sinais de diminuir. No entanto, foi no plano externo, que Donald Trump mais se destacou, desde as negociações de paz na Ucrânia, cada vez mais longínquas, passando pela intervenção no conflito no Médio Oriente, até chegar ao ataque cirúrgico ao Irão, com o desmantelamento (?) do programa nuclear, e o apoio incondicional a Israel. Por fim, mas não menos relevante, as conclusões da Cimeira da NATO a serem talvez o ponto mais alto do seu Mandato até agora, “convencendo” os aliados a aumentarem os investimentos na defesa e segurança.
Tudo isto numa altura em que, em Bruxelas, discutimos o Quadro Financeiro Plurianual (QFP), que deve ser apresentado no próximo dia 16 de julho, sendo justificados os receios em torno do orçamento da Política Agrícola Comum (PAC – a mais antiga política da UE) e da Coesão, com reduções previstas entre 15 e 25%, multiplicando-se os apelos e as pressões para que, no mínimo, sejam mantidas as verbas para a Agricultura, compatíveis com as ambições da Visão.
Porque o que está em causa é a proposta de um plano de parceria nacional, com a integração da PAC (386,6 biliões de €) e dos fundos de coesão (392 biliões de €) em envelopes nacionais, geridos um pouco à medida do PRR. As “vantagens” seriam a de introduzir maior flexibilidade e simplificação. Todos conseguimos imaginar os impactos negativos deste tipo de abordagem, pelo que temos de ser frontalmente contra. Sem hesitações.
Para além dos Ministros da Agricultura, também o Parlamento Europeu tem defendido que o orçamento para a PAC não pode ser prejudicado pelos investimentos em defesa, com todas as famílias políticas alinhadas contra eventuais cortes nas verbas para a Agricultura. O Comissário Christophe Hansen tem sublinhado a necessidade da PAC dispor do financiamento necessário. No entanto, é cada vez mais evidente que a aposta na defesa, na sequência da guerra lançada pela Rússia na Ucrânia, deverá ser considerada no próximo QFP para o período 2028-2034.
Agricultura e Coesão não podem ser consideradas como moeda de troca para estas negociações.
O final deste período de tréguas tarifárias acontece, igualmente, quando está praticamente encerrado, a depender da ratificação dos Estados-membros, o acordo entre a UE e a Ucrânia, da maior relevância para Portugal ao nível do aprovisionamento de cereais, mas que é criticado pelo COPA/COGECA e por alguns países. O aumento dos contingentes para produtos sensíveis e os mais reduzidos padrões de qualidade exigidos aos produtos provenientes da Ucrânia, que terão de estar conformes com o acquis comunitário até 2028, são os principais motivos de preocupação.
Num outro tabuleiro, o Mercosul, sendo previsível que possa ser aprovado até final de julho, precisando para tal de uma maioria qualificada. França, Polónia e Itália continuam como grandes resistentes contra a tão desejada maioria, enquanto outros, como a Suécia ou Hungria, colocam reservas devido aos padrões de qualidade. Regressam os temores do food safety, quando tanto falamos de food security. Mas não podemos dar-nos ao luxo de permitir na Europa a existência de crises alimentares.
É este o ambiente que temos à volta do regresso das tarifas. O contexto, de grandes desafios para a UE é bastante sensível, mas, apesar disso, configura uma aposta clara na ajuda à Ucrânia, à sua reconstrução e à sua integração no espaço europeu.
Para já, a Administração Trump enviou cartas a diferentes países, com propostas de tarifas a partir de 1 de agosto, entre 25% a 50%, sendo o Brasil, um dos alvos desta última investida, provavelmente devido à atual liderança dos BRIC ou às referências do seu atual Presidente ao ex-Presidente Jair Bolsonaro, o que tem sido considerado como ingerência dos EUA na política interna de um outro país. Uma disputa que pode relançar ainda mais a importância do acordo com o Mercosul.
Com a consciência de que já temos suficientes conflitos e que não é possível viver em permanente instabilidade, o que, entre outros aspetos não menos importantes, põe em causa a logística e o funcionamento das cadeias de abastecimento, impactando negativamente o mercado global, a UE está moderadamente otimista quanto ao desfecho de um acordo com os EUA. Esse acordo trará, provavelmente, tarifas de 10% para os produtos importados da UE e para elas há a promessa de retaliação, caso seja necessário, regressando-se às propostas que aqui demos conta antes da pausa. Recorde-se que o primeiro pacote adotado em abril foi suspenso até 14 de julho. Não é, pois, indiferente, que esteja agendada uma reunião do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros para a próxima segunda-feira.
Até ao momento, a UE não recebeu qualquer carta, mas o Presidente Trump pode enviá-la a qualquer momento, como aliás já admitiu.
Quer pela proposta de orçamento para o QFP, quer pelas tarifas, a próxima semana promete ser decisiva. Recomenda-se “gelo nos pulsos” e que os produtos alimentares sejam retirados de qualquer disputa comercial, qual arma de arremesso. Para que a Agricultura e a Alimentação tenham o lugar que merecem.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
A alimentação não é defesa e segurança? – Jaime Piçarra – Notas da semana